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Falta de água, ratos e tortura: inspeção em unidades socieducativas do Ceará constata violações

Falta de água, ratos e tortura: inspeção em unidades socieducativas do Ceará constata violações

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Legenda: Inspeção em unidades socieducativas encontrou marcas de agressões e autoflagelação nos jovens, além de problemas estruturais
Foto: Divulgação/Cedeca

Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo diz que Comissão Interamericana de Direitos Humanos fez elogios ao sistema cearense e não identificou superlotação.



Uma comitiva coordenada pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) inspecionou seis unidades socioeducativas no Ceará e constatou uma série de violações. Os problemas denunciados vão desde a estrutura dos espaços — com superlotação, ratos e baratas nas celas, devido à sujeira, e falta de água — até ameaças e agressões feitas por policiais e socioeducadores contra os jovens em conflito com a lei. 

Foram inspecionadas as unidades masculinas Dom Bosco, Patativa do Assaré, Canindezinho, São Francisco e São Miguel e a feminina Aldaci Barbosa, todas localizadas em Fortaleza. Peritos e técnicos do Conselho estiveram nos locais na terça (29) e quarta-feira (30).

Também participaram da comitiva o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), a Coalizão Pela Socioeducação, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Ceará (CEDDH), o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca Ceará) e a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece).

Os relatos colhidos pela comitiva, com mais de 200 jovens internados nas unidades, foram apresentados à imprensa nesta quinta-feira (31) e devem ser transformadas em relatório e enviadas aos órgãos responsáveis.

Antes disso, todo o cenário deve ser apresentado ao superintendente do Sistema Socioeducativo e à Casa Civil do Governo do Ceará ainda nesta quinta, em reunião marcada para as 15 horas.

Os órgãos que inspecionaram as unidades ressaltaram que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) cobrou, em fevereiro deste ano, explicações do Estado após um novo relatório apresentar o descumprimento de medidas cautelares aplicadas em 2015.

Questionada sobre as denúncias, a Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo (Seas) ponderou que "o mais recente posicionamento formal da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) destacou avanços significativos do Sistema Socioeducativo do Ceará, com elogios e reconhecimento do cumprimento das medidas cautelares estabelecidas".

"Com relação a apontamentos mencionados, a Seas informa que não foi formalmente citada em qualquer relatório ou resultado decorrente da mencionada inspeção. Reafirma, no entanto, seu compromisso com a apuração rigorosa de eventuais denúncias, por meio de registros formais de ocorrência, exames de corpo de delito e instauração de processos administrativos junto à Corregedoria deste órgão, assegurando a devida responsabilização dos envolvidos, se comprovadas as irregularidades", garantiu a Seas.

Segundo a Superintendência, "para o exercício de 2025, estão previstos investimentos da ordem de R$ 3,4 milhões destinados à melhoria da infraestrutura dos Centros Socioeducativos. Além disso, está em andamento a construção do novo Centro Socioeducativo Aldaci Barbosa Mota, unidade feminina com capacidade para 70 adolescentes, que contará com um investimento de R$ 12 milhões".

Comitiva do Conselho Nacional dos Direitos Humanos
Legenda: Dados colhidos durante inspeção foram apresentados por integrantes da comitiva
Foto: Messias Borges

Problemas de estrutura identificados

Conselheiro Nacional dos Direitos Humanos, Diego Alves afirmou que as unidades cearenses são "antigas e fora dos padrões" do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). "Se assemelham com prisões, e não podem ser confundidas com isso. Deveriam ser espaços mais abertos", reforçou.

Foram projetadas imagens de espaços vistoriados pela comitiva, como a ala chamada de "tranca" pelos adolescentes, onde seriam cumpridas medidas disciplinares na unidade feminina Aldaci Barbosa. O espaço é todo fechado e escuro, além de pequeno, e às vezes é ocupado por duas ou três adolescentes ao mesmo tempo. Também foram encontradas manchas de sangue no local. 

As unidades sofrem ainda com superlotação, impedindo inclusive que os jovens fiquem dentro das celas, informa Diego Alves. Há relatos de uma grande sujeira dentro das celas, inclusive atraindo animais, como ratos, e insetos, como baratas e escorpiões. Os técnicos do Conselho Nacional dos Direitos Humanos também perceberam a ausência de ventilação apropriada dentro dos espaços, o que os torna quentes. Os banheiros também não possuem vaso sanitário com descarga. 

Mara Carneiro, do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca Ceará), que também integrou a comitiva, falou sobre o fato de os banheiros das unidades não possuírem vaso sanitário com descarga. Na unidade São Miguel, por exemplo, havia apenas uma "bacia turca" – um tipo de vaso sanitário instalado diretamente no chão, sem assento, onde quem utiliza deve fazê-lo agachado. Em outras unidades, havia apenas um buraco no chão.  

Problemas nas estruturas de unidades socieducativas
Legenda: (1) "Bacia turca" encontrada na unidade São Miguel / (2) Sangue encontrado na ala disciplinar da unidade Aldaci Barbosa
Foto: Divulgação/Cedeca

"Não há livre acesso à água, à higiene, para descarga... Até para beber. O acesso à água potável é limitado, mediado pelos educadores, pelos agentes. Então, achamos que a ausência de livre acesso à água potável, inclusive água resfriada, diante do calor que fica nas celas, com a ausência de ventilação, é uma mudança urgente", acrescenta Diego Alves.

'Tortura', falta de atendimento e autoflagelação

Os integrantes da comitiva falaram de relatos de violência física e psicológica contra os jovens, cometida por socioeducadores e policiais, com agressões e ameaças. 

Diego Alves também disse que existem "indícios bastante graves de tortura", inclusive a partir de violência psicológica, como a restrição de acesso a equipamentos básicos de higiene, tendo que passar até 7 dias com o mesmo short e colchão e sem acesso a tolhas ou lençóis. Também foram fotografadas marcas em um adolescente que teria sido ferido por um agente socioeducativo.

Há ainda indícios de falta de atendimento ou acompanhamento adequado a problemas de saúde enfrentados pelos jovens internados na unidade. Durante a inspeção, foi encontrado um adolescente com o braço quebrado. 

"No Canindezinho, nós tínhamos adolescente que estava com o braço quebrado, que não tinha sido levado ao médico, estava com dor. Nós informamos que só íamos sair de lá se ele fosse atendido, e ele só foi levado para o hospital porque nós estávamos lá", destacou Mara Cordeiro. 

Também foram apresentadas imagens de jovem com uma bala alojada na coxa, que teria sido feita no momento da apreensão dela e que não foi retirada, e de uma adolescente com marcas de autoflagelação. 

Marcas físicas em jovens internados em unidades socioeducativas
Legenda: (1) Bala alojada na coxa de adolescente no momento da apreensão não foi retirada / (2) Marcas de autoflagelação feitas por uma adolescente
Foto: Divulgação/Cedeca

A saúde mental tem sido um problema em crescimento entre os jovens internados, mas haveria também, conforme a comitiva, um uso "massivo" de medicamentos controlados, mas sem o devido acompanhamento terapêutico. 

"Na nossa avaliação, avaliação inicial ainda, há um excesso de medicalização. A gente até pediu documentos, com receitas para a gente poder avaliar isso mais aprofundado, mas adolescentes tomando muitos medicamentos, um número excessivo de comprimidos, todos os dias", disse. 

Perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Rogério Duarte afirma que há uma "prática estruturada, persistente, contínua de tortura" nas unidades socioeducativas visitadas. 

"Se pensa muito, quando a gente tem uma imagem de tortura, a imagem que vem, pelos livros de história, é a pessoa no pau de arara, de cabeça para baixo, amarrado. Essa é a visão que a gente tem", pontua Rogério Duarte. "Mas, no nosso trabalho, a gente tem percebido em alguns lugares as torturas suaves, torturas softs".

"Aqui a gente não teve pau de arara, mas a gente também não teve tortura soft. A gente tem tortura mesmo. A tortura que está presente numa estrutura arquitetônica completamente inadequada, que precisa ser destruída, demolida, mas numa cultura institucional que também precisa ser demolida, destruída".
Rogério Duarte
Perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura

"Não é possível permitir um adolescente que está sendo responsabilizado pelo cometimento de um ato infracional e que está sob a custódia do Estado, seja por esse mesmo estado violado, violentado na sua dignidade mais básica", completa.

A Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo, por sua vez, apontou que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos fez elogios ao Sistema Socioeducativo cearense, como:

  • Ausência de superlotação nos Centros Socioeducativos;
  • Implantação do Plano Político-Pedagógico em todas as unidades, assegurando educação formal universal, qualificação profissional e acesso às atividades de cultura, esporte e lazer para todos os adolescentes;
  • Implementação de metodologias de Justiça Restaurativa, como os Círculos de Paz, com a participação ativa de jovens, familiares e profissionais do sistema;
  • Criação da Escola de Formação para os servidores do Sistema Socioeducativo, com capacitação continuada e ações permanentes de qualificação do quadro de recursos humanos;
  • Realização do primeiro concurso público da história do Sistema Socioeducativo do Ceará, com oferta de 1.080 vagas;
  • Redução a zero das ocorrências de crises grave, com a atual inexistência de tumultos ou rebeliões nas unidades.

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Cariri Ativo

01.08.2025