De 1988 a 2025: a disputa pela jornada de trabalho no Brasil retorna com velhos embates - Cariri Ativo - A Notícia Com Credibilidade e Imparcialidade
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De 1988 a 2025: a disputa pela jornada de trabalho no Brasil retorna com velhos embates

De 1988 a 2025: a disputa pela jornada de trabalho no Brasil retorna com velhos embates

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Legenda: Debates sobre a jornada de trabalho já estiveram em evidência no Brasil em outros anos
Foto: Agência Brasília

A proposta ressurge com velhos dilemas e novas pressões da inteligência artificial sobre os empregos.


Escrito por
Beatriz Matos, de Brasíliaproducaodiario@svm.com.br

Reduzir a jornada de trabalho no Brasil nunca foi apenas uma discussão técnica. Desde a Constituinte de 1988, quando se derrubou a carga horária de 48 para 44 horas semanais, o tema simboliza a tensão entre o que os patrões chamam de “custo” e o que trabalhadores enxergam como “dignidade”.

Na época, chegou-se a discutir uma jornada de 40 horas semanais. A proposta avançou nas primeiras comissões da Constituinte, mas foi derrotada na votação final. O meio-termo de 44 horas prevaleceu e vigora até hoje, apesar da forte resistência empresarial que alertava para risco de quebra das empresas. O então deputado constituinte e hoje senador Paulo Paim (PT-RS) já defendia a redução e segue, quase quatro décadas depois, à frente desse debate.

Na primeira semana deste mês, Paim voltou ao tema em audiência pública no Senado. Durante a sessão, ele relembrou o clima de 1988 e destacou que os mesmos argumentos usados naquela época estão sendo repetidos hoje.

A avaliação foi reforçada por Alexandre Sampaio Ferraz, economista do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), que lembrou que as previsões de colapso também apareceram em 1988, quando a jornada caiu de 48 para 44 horas, mas não se confirmaram.

“Não acabou em 88 e também não vai acabar numa transição para 40 horas, nem para 36”, afirmou.

mobilização de sindicatos no congresso nacional
Legenda: Durante todo o período da Constituinte, sindicatos se mobilizaram pelos direitos trabalhistas no Congresso
Foto: CEDI/Câmara dos Deputados

O que mudou quase 40 anos depois

Quase quatro décadas após a Constituinte, os argumentos centrais permanecem: empresários alertam para o aumento de custos, enquanto trabalhadores defendem mais dignidade e qualidade de vida. O senador Paulo Paim continua na linha de frente da pauta trabalhista e é autor da PEC 148/2015, que prevê a redução gradual da carga semanal de 44 para 40 horas e, em seguida, para 36 horas, sem corte de salários.

O relator na Comissão de Constituição e Justiça, senador Rogério Carvalho (PT-SE), propôs ajustes para que a redução venha acompanhada de mudanças na escala de trabalho, privilegiando formatos como o 5x2. A ideia é substituir o modelo mais comum hoje, o 6x1, em que o trabalhador tem apenas um dia de descanso por semana.

Além desse embate histórico, novos fatores foram incorporados ao debate e ganharam espaço na audiência no Senado. A automação e a inteligência artificial aparecem hoje como fatores que podem acelerar a substituição de postos de trabalho.

Na última audiência, Paim argumentou que a proposta é também uma resposta ao futuro do trabalho, marcado pela digitalização e pela inteligência artificial. Para ele, reduzir a jornada é uma forma de preservar empregos e garantir dignidade diante das transformações que já atingem o mercado.

“Alguém tem dúvida que a inteligência artificial vai atropelar o mundo do trabalho? (…) Na minha empresa eu tinha 200 trabalhadores, agora eu faço com 20”, disse o senador, defendendo que reduzir a jornada pode ajudar a preservar empregos.

Outro ponto levantado foi a precarização das relações de trabalho. O presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, Walter Souza Puglies, alertou para a expansão da pejotização e de contratos fraudulentos, que reduzem a proteção prevista na CLT. Ele defendeu que limites legais são essenciais, já que a negociação direta entre patrões e empregados raramente ocorre em condições de igualdade.

“É disso que se trata quando se fala em pejotização, em situações de fraude. (…) O direito à percepção ética não admite fraude.”
Walter Souza Puglies
Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho

As centrais sindicais também defenderam mudanças na forma como o tempo de trabalho é distribuído. Para Rodrigo Rodrigues, da CUT-DF, a escala 6x1 compromete a saúde física e mental dos trabalhadores.

As disputas históricas entre custo e dignidade somam-se agora aos desafios da tecnologia, da precarização e da organização do tempo de trabalho.

trecho de proposta sobre jornada de trabalho
Legenda: A Comissão da Ordem Social aprovou a redução para 40 horas semanais, inserida no anteprojeto do colegiado
Foto: Arquivo do Senado

O contraponto empresarial

Do outro lado da discussão, representantes do setor produtivo alertaram que a redução da jornada por imposição legal pode trazer riscos econômicos. O argumento central é que, sem ganhos prévios de produtividade, a medida aumentaria custos para as empresas e poderia comprometer a competitividade do país.

O especialista Pablo Rolim, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), destacou que a média de horas já praticada no Brasil é de cerca de 39 por semana, abaixo do limite constitucional de 44. Para ele, eventuais reduções deveriam vir de negociações setoriais e não por lei.

“Nos países desenvolvidos, a redução de horas não ocorreu por lei, mas por transformações produtivas e ganhos de produtividade”, afirmou.

Segundo cálculos apresentados na comissão, fixar a jornada em 36 horas sem redução salarial poderia elevar os custos em até R$ 8,8 bilhões apenas na indústria, além de gerar pressões adicionais sobre contratos do setor público.

Outros dados apresentados pelo economista Alexandre Sampaio Ferraz, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), seguiram em direção oposta. O estudo da entidade projeta que a redução da jornada de 44 para 40 horas semanais poderia gerar 3,5 milhões de empregos e movimentar até R$ 9 bilhões em massa salarial.

Outras propostas em debate no Congresso

Nas duas Casas legislativas tramitam outros projetos que tratam da redução da jornada de trabalho.

No Senado

PEC 4/2025 – Apresentada pelo senador Cleitinho (Republicanos-MG), propõe reduzir a jornada máxima para 40 horas semanais, distribuídas em até cinco dias, com limite de oito horas por dia. A ideia é fixar em lei um teto menor que o atual, sem mexer na remuneração.

PL 1.105/2023 – De autoria do senador Weverton (PDT-MA), estabelece a possibilidade de redução da jornada desde que mantido o salário integral. O texto busca abrir espaço para acordos entre patrões e empregados, sem impor uma regra única para todos os setores.

PRS 15/2024 – Proposto pela senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), cria o Diploma Empresa Ideal, uma espécie de selo de reconhecimento às empresas que adotarem práticas mais favoráveis aos trabalhadores, como a diminuição da carga horária sem corte de salários.

Na Câmara dos Deputados

PEC 8/2025 – Apresentada pela deputada Erika Hilton (Psol-SP), altera a Constituição para pôr fim à escala 6x1 e adotar quatro dias de trabalho e três de descanso. A jornada seria limitada a 36 horas semanais, sem redução salarial, aproximando-se de experiências internacionais de semana reduzida.

PEC 221/2019 – De autoria do deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), propõe a redução gradual da jornada para 36 horas semanais, a ser alcançada no prazo de dez anos. A intenção é permitir uma transição lenta, reduzindo resistências e dando tempo para adaptação do mercado de trabalho.

Especialistas avaliam que a PEC amplia direitos, mas traz desafios

A advogada Natália Guazelli, da Comissão de Direito do Trabalho da OAB/PR, lembra que o debate sobre a redução da jornada acompanha o país desde a Constituinte de 1988. Naquele momento, sindicatos defendiam a diminuição para 40 horas semanais, enquanto empresários alertavam para os riscos de desemprego e aumento de custos. O impasse resultou no limite de 44 horas, que permanece até hoje.

“Na Constituinte, a ideia era reduzir de 48 para 40 horas. De um lado, havia a promessa de mais empregos e qualidade de vida; do outro, o temor de custos maiores e prejuízos econômicos. O caminho do meio prevaleceu com a fixação em 44 horas”, explicou.

Segundo Natália, os dilemas de 1988 voltam agora com a PEC das 36 horas. Para ela, a mudança teria impacto direto na organização das empresas, exigindo contratações adicionais ou revisão de escalas.

“A redução impactaria custos e logística das empresas. Para os trabalhadores, em contrapartida, significaria mais tempo de descanso, lazer e convívio familiar”, afirmou.

A advogada Tatiana Sant’Anna também considera que a proposta pode representar um avanço social, mas avalia que a transição precisa ser cuidadosamente planejada para evitar insegurança.

“A redução amplia direitos, mas, sem regras bem definidas, pode gerar insegurança, sobretudo em setores que já têm jornadas diferenciadas, como saúde e segurança”, alertou.

Protestantes seguram faixas e bandeiras pelo fim da escala 6x1
Legenda: Protesto pelo fim da escala 6x1 no Congresso Nacional
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Ela lembra que a legislação atual já permite ajustes, como a escala 12x36, em que o trabalhador cumpre 12 horas de serviço e folga nas 36 seguintes. No entanto, destaca que só uma emenda à Constituição pode dar validade plena à nova jornada.

“Negociações coletivas resolvem situações específicas, mas apenas uma emenda fixa de forma uniforme o teto de 36 horas”, disse.

O advogado Ivo Ary Meier Junior, do Ciscato Advogados Associados, reforça que os impactos seriam imediatos, já que a PEC altera o artigo 7º da Constituição, dispositivo que define direitos básicos dos trabalhadores, como a jornada máxima de 8 horas diárias e 44 semanais.

“A mudança mexeria nesses parâmetros constitucionais e teria reflexo imediato nos contratos em vigor, no cálculo de horas extras e no controle da jornada”, explicou.

Ele destaca que os desafios não se limitam ao aspecto jurídico. Custos mais altos, necessidade de reorganizar escalas e contratos e maior risco de fraudes estão entre os obstáculos previstos.

“Será preciso contratar mais, rever contratos e criar mecanismos de adaptação. Do contrário, o risco é aumentar litígios e a insegurança jurídica”
Ivo Ary Meier Junior
Advogado

Para Ivo, o peso político também é decisivo. Ele compara o atual debate com o contexto da redemocratização, quando a redução para 44 horas foi aprovada.

“Em 1988, a redução ocorreu em meio à pressão sindical e ao ambiente de redemocratização. Hoje, o Congresso é mais fragmentado, as bancadas empresariais são mais fortes e a economia instável, o que aumenta a resistência a mudanças desse porte”, afirmou.

Outros países já testam jornadas menores

A proposta de reduzir a jornada de trabalho no Brasil não surge isolada. Vários países já experimentam modelos com menos horas semanais, em busca de mais produtividade e qualidade de vida. Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostram que, entre as maiores economias do mundo, o Brasil ainda está acima da média internacional.

Hoje, a carga de trabalho semanal no país gira em torno de 39 horas, colocando o Brasil na 11ª posição entre os membros do G20. O contraste é grande com países como o Canadá, onde a média já caiu para 32 horas, e reforça a distância de experiências de semanas reduzidas que começam a ganhar espaço também na Europa. No extremo oposto, a Índia lidera com quase 47 horas semanais.

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Cariri Ativo

16.09.2025