Produtos ultraprocessados têm menor custo de produção e não sofrem variação de preço por mudanças na safra ou fenômenos climáticos.
Na casa de Veronica, a carne deu lugar à mortadela e o azeite à gordura vegetal. Também está mais difícil comprar frutas e verduras. A moradora do bairro Serviluz, em Fortaleza, conta que manter uma alimentação saudável para ela e seus três netos está mais difícil desde meados de 2024, devido à alta do preço dos alimentos.
O café, um dos itens do supermercado que mais subiu de preço nos últimos meses, também deixou de estar presente na feira da família e deu lugar ao chá. Já o leite das crianças foi substituído pelo suco industrializado.
“Eu tive de substituir várias frutas, tenho comprado só a banana. Tomate eu não tenho comprado porque está muito caro. O arroz eu também tive que substituir pelo cuscuz. É muito difícil porque as crianças são muito seletivas”, conta Veronica.
Beneficiária do BPC e impossibilitada de trabalhar devido a uma deficiência, ela precisa fazer um malabarismo no orçamento para conseguir comprar os itens básicos de alimentação.
“Se os preços continuarem altos, cada dia a gente vai ter que abrir mão de alguma coisa. Fica difícil se alimentar de forma saudável, as crianças gostam muito de frutas e nem sempre eu posso comprar. Eu compro o que eu posso”, aponta.
Em meio às substituições no carrinho de compras, as famílias podem aumentando o consumo de alimentos ultraprocessados - aqueles que passam diversas etapas de produção, contêm muitos aditivos químicos e têm o consumo associado a doenças crônicas.
Isso porque esses produtos são menos afetados pela inflação. Um levantamento da coalizão Pacto Contra a Fome aponta que as pressões inflacionárias impactam de forma desigual os alimentos, dificultando o acesso à comida saudável para os mais pobres.
Em fevereiro, os alimentos in natura e minimamente processados tiveram alta de 2,35% nos preços. Já para os processados, a inflação foi de 0,16%, enquanto para os ultraprocessados foi de 0,80%.
A discrepância se confirma ao longo dos anos. A inflação acumulada de 2020 a de 2025 para os alimentos naturais e pouco processados é de 49%, enquanto para os ultraprocessados foi de 38%.
PRODUÇÃO DE ULTRAPROCESSADOS É MAIS BARATA
A produção dos alimentos ultraprocessados é mais barata, já que os produtos têm maior vida útil e utilizam ingredientes substituíveis, como açúcar, amigo e óleos vegetais processados, explica Vitor Hugo Miro, pesquisador do FGV IBRE e da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Mantendo o mesmo preço, os industrializados podem conter alimentos com menor valor nutricional ou ter a quantidade reduzida, fenômeno chamado de reduflação. Já os alimentos in natura e minimamente processados são mais expostos à variação de preços sazonais, por mudanças na produção e fenômenos climáticos.
“Por serem mais perecíveis, esses produtos têm menos capacidade de estocagem e conservação, o que torna os preços mais sensíveis em momentos de menor oferta. Os produtos in natura também exigem transporte rápido e em condições específicas, estão mais sujeitos a encarecimento por aumento de combustíveis ou gargalos logísticos”, aponta.
O especialista aponta que as indústrias de ultraprocessados têm vantagens de custos, por produzirem em maior escala e comprarem insumos com contratos de longo prazo. Com preços mais baixos, cresce o risco de substituição dos alimentos frescos por produtos de menor qualidade nutricional.
As famílias mais pobres tendem a ser mais afetadas por aumentos de preços de alimentos de qualquer natureza. Em famílias de baixa renda, os gastos com alimentação representam uma parcela maior do orçamento. Quando o preço dos alimentos in natura (como arroz, feijão, legumes, frutas e carnes) aumenta, o impacto é mais severo.
MENOR OSCILAÇÃO DOS PREÇOS ATRAI CONSUMIDORES
A variação dos preços dos produtos naturais e pouco processados também tem efeitos a longo prazo: pode inibir o consumo dos consumidores independentemente do preço corrente. É o que explica Ricardo Mota, gerente de inteligência da Pacto Contra a Fome.
“Essa oscilação quando ocorre de forma recorrente faz com que o consumidor olhe para esse alimento de forma mais negativa. Isso estimula a escolha de um alimento ultraprocessado, que tem um preço mais estável no tempo”, aponta.
A partir da Pesquisa de Orçamentos Familiares, a organização identifica uma mudança no padrão de alimentação das famílias. O consumo de hortaliças e frutas pelas famílias registrou queda de 22,4% e 8,5% na comparação entre 2008-2009 a 2017-2018. Já os ultraprocessados cresceram a participação na alimentação de 12,6% para 18,4%.
Ricardo Mota chama atenção para a necessidade de políticas públicas que garantam a produção dos itens básicos da alimentação brasileira. Isso inclui apoiar pequenos agricultores e produções familiares, que podem se beneficiar de acesso a crédito e capacitação técnica.
“Os insumos principais dos ultraprocessados, que são a soja e o milho, são tratados como commodity e aumentam o volume da produção. Enquanto os alimentos mais saudáveis têm uma queda na área plantada. O mamão, por exemplo, teve queda de 40% na produção no último ano”, aponta o gerente de inteligência.
A Pacto Contra a Fome identifica que o movimento de alta no preço dos alimentos se intensificou em outubro de 2024, afetando de forma mais severa os alimentos saudáveis, suscetíveis aos fenômenos climáticos.
De modo geral, as carnes estão em patamar mais caro devido ao aumento no volume exportado - com o dólar valorizado, os produtores destinaram maior quantidade ao exterior. O café deve se manter com preços altos nos próximos meses, já que a oferta mundial se encontra em níveis baixos por problemas climáticos.
Em fevereiro, os itens que mais subiram de preço foram o café moído, o tomate, a cenoura e o frango. Já os itens com maior queda foram o leite e a batata, que tiveram aumento de produção devido à melhoria nas condições climáticas.
DANOS À SAÚDE E AO DESENVOLVIMENTO
Conforme o Guia Alimentar da População Brasileira, o consumo de alimentos ultraprocessados deve ser evitado devido à composição nutricional desbalanceada e com excesso de calorias.
Com açúcares, gorduras e diversos aditivos, os produtos são formulados para serem extremamente saborosos e tendem a limitar o consumo de alimentos in natura e minimamente processados. O documento também destaca que os ultraprocessados afetam negativamente a cultura, a vida social e o meio-ambiente.
Os ultraprocessados são formados de substâncias extraídas de alimentos (óleos, gorduras, açúcar e amido) ou constituídas em laboratório. Como exemplo, estão biscoitos, sorvetes, balas, cereais açucarados, salgadinhos, refrigerantes, pratos prontos, salsichas e embutidos.

O guia também recomenda limitar o consumo de alimentos processados - aqueles que têm a composição nutricional alterada, como frutas em caldas, legumes em salmoura, sardinha enlatada, queijos e pães feitos de farinha de trigo.
O consumo desses alimentos contribui para distúrbios de saúde, como obesidade, pressão arterial elevada, diabetes e doenças cardiovasculares, destaca Ilana Nogueira Bezerra, nutricionista e professora do Curso de Nutrição da UECE. “Desregulam o apetite, tem impacto na microbioma intestinal e podem ter repercussões também imunológicas e metabólicas para os indivíduos”, acrescenta. Veja as trocas mais comuns:
- frutas por sucos industrializados
- arroz, feijão e carne por macarrão instantâneo ou refeições pré-preparadas
- água por refrigerante ou águas saborizadas
- sanduíches por biscoitos recheados ou salgadinhos
A nutricionista destaca que o consumo pode ser ainda mais prejudicial para crianças, que ainda estão formando os hábitos alimentares e precisam da quantidade adequada de nutrientes para se desenvolver.
“Além de substituírem alimentos naturais, favorecem a formação de hábitos alimentares inadequados que repercutem na vida adulta. Comprometendo não só o desenvolvimento físico dessas crianças, mas também podendo ter impactos no desenvolvimento cognitivo e favorecendo o desenvolvimento de doenças crônicas na fase na adolescência e na fase adulta”, aponta.
A nutricionista aponta que, para economizar, as famílias devem recorrer aos produtos vendidos em feiras e produções familiares, dando preferência aos produtos locais
“É preciso se atentar para alimentos sazonais, 'da fruta daquele mês', comprando no período que tem maior produção de manga, de caju, por exemplo. É preciso ter um planejamento semanal para priorizar arroz, feijão, ovo, legumes e frutas locais. Sempre que possível preparar as refeições em casa”, orienta.
A especialista ressalta que o Programa Nacional de Alimentação Escolar favorece o consumo alimentar mais saudável para as crianças que estão na escola.
diariodonordeste.verdesmares.com.br
Cariri Ativo
31.03.2025