Postagens descontextualizam fala de Lula sobre tratado com Irã; acordo feito no Conselho de Segurança da ONU não previa fornecimento de urânio e foi rejeitado pelos EUA em 2010
No vídeo, Lula cita um acordo sobre urânio feito com o Irã, mas é uma referência a um acordo feito em 2010, mediado pelo Brasil enquanto membro rotativo do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). O tratado previa envio de urânio enriquecido da Turquia para pesquisas médicas no Irã, sem qualquer menção a fornecimento brasileiro do metal ou uso militar. O tratado foi vetado pelos Estados Unidos, que firmou acordo com o Irã anos depois.
Em nota, a Secretaria de Comunicação (Secom) do Planalto desmentiu o boato e afirmou que o Brasil não forneceu urânio ao Irã e que não vende urânio para fins bélicos. O Brasil faz parte do Tratado sobre a Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e do Tratado para a Proscrição de Armas Nucleares na América Latina e no Caribe (Tratado de Tlatelolco).
Além disso, todas as instalações nucleares do Brasil são inspecionadas pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), da ONU, e pela Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC).
Os conteúdos também acrescentam outra informação incorreta de que o Brasil forneceu urânio ao atracamento de dois navios iranianos no Rio de Janeiro (RJ) em 2023. O porta-helicópteros IRIS Makran e a fragata IRIS Dena chegaram em solo brasileiro em 26 de fevereiro e ficaram até 4 de março daquele ano.
Na ocasião, a Marinha do Brasil autorizou “desembarque da tripulação e convívio social, observando normas sanitárias locais vigentes em conformidade com as condições epidemiológicas na ocasião da visita”. Não há indícios de que o Brasil tenha enviado urânio ou qualquer outro item às embarcações.
Quem criou o conteúdo investigado pelo Comprova
O primeiro vídeo foi publicado por um perfil no X que se identifica apenas com emojis da bandeira do Brasil, do signo de leão e de Israel. A conta soma 7,8 mil seguidores e, até a publicação desta verificação, o post registrava 246,5 mil visualizações, 10 mil curtidas e 3 mil repostagens.
A descrição exalta pautas da direita, afirma “Deus acima de tudo” e faz críticas ao PT (“#EsquerdaNunca”). As publicações, em geral, defendem políticas dos Estados Unidos, apoiam Israel e chamam o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de “ladrão”. O Comprova tentou contato com o responsável, mas não obteve resposta.
A segunda peça de desinformação partiu de um perfil do X que utiliza imagens e vídeos de um avatar supostamente gerado por inteligência artificial — de acordo com a Hive Moderation, que analisou a foto do perfil e um vídeo publicado, há mais de 99% de probabilidade de que esses conteúdos sejam sintéticos. Ainda assim, vale lembrar que ferramentas de reconhecimento de IA podem apresentar falsos positivos e não são infalíveis.
A conta reúne 5,7 mil seguidores e o post alcançou 35,8 mil visualizações, 2 mil curtidas e 1 mil compartilhamentos. O perfil publica conteúdo elogioso a Jair Bolsonaro e críticas sistemáticas ao Irã, ao PT, ao Supremo Tribunal Federal e a Lula. Assim como no primeiro caso, o Comprova procurou o responsável, recebeu um breve retorno, mas logo em seguida foi bloqueado pelo perfil.
Por que as pessoas podem ter acreditado
A postagem combina conteúdo enganoso, manipulação emocional e insinuação conspiratória visando gerar indignação política. Ela utiliza táticas como linguagem inflamatória, exemplificada por expressões como “Lula ladrão”, “traição silenciosa” e a insinuação de que “a esquerda vai fingir que não aconteceu”.
Essas frases são típicas de discursos polarizadores, que provocam reações emocionais intensas, especialmente em públicos já predispostos contra o presidente.
A postagem também sugere uma conspiração ao mencionar o Mossad, serviço secreto israelense, com um perfil falso (@MOSSADil).
Essa técnica é comum na desinformação conspiratória que tenta conferir legitimidade ao conteúdo, ou difundir a ideia de um “vazamento interno”. Isso pode levar a audiência a acreditar na existência de vigilância ou retaliação internacional iminente, sem qualquer evidência real.
Acordo entre Brasil e Irã era para pesquisas médicas
Os vídeos analisados mostram trecho de discurso de Lula durante a 15ª Cúpula dos Brics, em 2023, na cidade sul-africana de Joanesburgo. Na ocasião, o petista defendia o convite feito ao Irã para integrar o bloco econômico. Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Etiópia e Argentina também foram convidados.
Na mesma fala, Lula comenta sobre um acordo de enriquecimento de urânio, fala que foi tirada de contexto para sugerir que o Brasil enviou urânio, metal utilizado na geração de energia nuclear e em armamentos, para o país do Oriente Médio.
O acordo a que o presidente se refere não previa, porém, o envio do material pelo Brasil. O acordo foi, além disso, elogiado pelo secretário-geral da ONU na época.
O tratado foi feito por Brasil e Turquia, na época membros rotativos do Conselho de Segurança da ONU. O acordo previa o envio de urânio pouco enriquecido para o país turco que, por sua vez, enviaria urânio enriquecido ao Irã para ser utilizado em pesquisas médicas.
A negociação buscava reduzir as sanções ao programa nuclear iraniano, mas foi rejeitada pela Casa Branca, que impôs novas sanções ao Irã. Em 2012, a diplomacia brasileira atuou na mediação de um acordo entre Irã e Estados Unidos, mas Washington voltou atrás na própria proposta. O acordo entre EUA e Irã foi finalmente firmado em 2015 (até ser interrompido por Donald Trump em 2018).
Navios iranianos no Brasil
Os boatos foram compartilhados até mesmo por figuras públicas, como o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP). O filho do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) compartilhou imagens de duas manchetes de 2023: uma de fevereiro, que fala sobre os navios iranianos, e outra de agosto, sobre o sumiço de duas ampolas de urânio em Resende (RJ). “Não é algo confirmado, mas ninguém duvidaria que estas 2 notícias possam ter relação”, diz a legenda.
Não há qualquer relação entre o sumiço das ampolas, que aconteceu meses após a saída dos navios, e o suposto envio de urânio ao Irã. Em nota, as Indústrias Nucleares do Brasil (INB), empresa pública autorizada a extrair e processar o metal, afirmou que o caso do desaparecimento foi arquivado pelo Ministério Público após “rigorosa apuração que comprovou a total inexistência de qualquer ato ilícito”.
“A investigação concluiu que se tratou de erro operacional interno, sem qualquer consequência externa. Qualquer narrativa que sugira risco ou ilegalidade é falsa, irresponsável e totalmente desconectada da realidade dos fatos oficiais. Não houve crime, dano ambiental, nem qualquer risco à população no episódio citado”, informa.
A nota do governo federal também afirma que a “INB não tem qualquer negócio com o Irã e jamais teve”.
Fontes que consultamos: O Comprova utilizou como base publicações da BBC News Brasil, G1, UOL, Agência Brasil, Memorial da Democracia e do Diário Oficial da União, além de documentos oficiais como o Tratado sobre a Não Proliferação de Armas Nucleares e o Tratado de Tlatelolco. Também foi consultada uma nota oficial da Indústrias Nucleares do Brasil. Para verificar a autenticidade visual das imagens analisadas, foi utilizada a ferramenta Hive Moderation, que detecta a probabilidade de conteúdo gerado por inteligência artificial.
Por que o Comprova investigou essa publicação: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas, eleições e golpes virtuais e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: Estadão Verifica, Boatos.org e Aos Fatos já desmentiram a mesma desinformação verificada aqui.
O Diário do Nordeste integra a coalizão de veículos de comunicação para verificar informações falsas e conteúdos enganosos e combater a desinformação. Esta checagem foi produzida por UOL, Correio Braziliense e Jornal do Commercio. A investigação foi verificada por Terra, Folha de SP e NSC Comunicação.
diariodonordeste.verdesmares.com.br
Cariri Ativo
24.06.2025