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'Chave da impunidade': Juristas alertam para riscos trazidos pela PEC da Blindagem

'Chave da impunidade': Juristas alertam para riscos trazidos pela PEC da Blindagem

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Legenda: Câmara dos Deputados aprovou a PEC da Blindagem em sessão realizada nesta terça-feira (16)
Foto: Kayo Magalhães / Câmara dos Deputados

Proposta foi aprovada na Câmara dos Deputados e será analisada agora pelo Senado Federal.


Escrito por
Luana Barrosluana.barros@svm.com.br

A exigência de autorização da casa legislativa para que um parlamentar possa ser processado pode voltar a ser uma realidade no País após a Câmara dos Deputados aprovar a Proposta de Emenda da Constituição 3/2021, chamada de PEC da Blindagem. Os dois turnos da votação, já contestada no Supremo Tribunal Federal, ocorreram na última terça-feira (16).  Apesar de curta — com apenas 2 páginas e 2 artigos —, a PEC da Blindagem dificulta o andamento de processos criminais contra deputados federais e senadores, podendo se estender ainda a deputados estaduais e distritais, e também a prisão em flagrante, mesmo em crimes inafiançáveis. 

A autorização vale para processamento por crimes vinculados ao exercício do cargo público, como suspeitas de desvio de recursos de emendas parlamentares, por exemplo, até crimes como violência domésticatráfico de drogas e mesmo homicídio. Tudo isso sendo votado de forma secreta pelos parlamentares.

A PEC da Blindagem amplia ainda o foro privilegiado para alcançar presidentes nacionais de partidos políticos que possuam representação no Legislativo, mesmo aqueles que não exerçam cargos eletivos. Até mesmo medidas cautelares — como busca e apreensão, interceptação telefônica ou quebra de sigilo bancário — são afetadas pela medida. 

"A PEC da Blindagem vem em um contexto de regressismo. Não é nem conservadorismo não, é regressismo severo das instituições republicanas no Brasil", resume o advogado e professor de Direito da Universidade de Fortaleza, Gustavo Liberaro.

Ele cita o "avanço" representado pela emenda constitucional 35, aprovada em 2001, justamente o texto responsável por revogar a exigência de autorização do Congresso Nacional para o processamento de parlamentares. E agora, a PEC da Blindagem, representa um "retrocesso monumental", completa Liberaro. 

Advogado e consultor da Transparência Internacional, Guilherme France também fala sobre a regra anterior, prevista na Constituição de 1988, e no resultado dela: apenas um deputado federal processado após autorização da Câmara dos Deputados

No total, foram mais de 250 pedidos de autorização feitos pelo Supremo Tribunal Federal e rejeitados, arquivados ou ignorados pelo Congresso Nacional. "Isso mostra bem quais são as chances de uma casa legislativa aprovar o processamento criminal de um dos seus próprios membros. É uma chance ínfima", ressalta. 

O que mudou em 20 anos?

A autorização para a abertura de processos contra deputados e senadores era prevista na Constituição Federal. Contudo, lembra Liberaro, o contexto político era bem diferente. 

"Em 1988, a gente trata de uma Constituição que está saindo da ditadura. Então, os nossos constituintes tiveram todo o cuidado do mundo de procurar proteções para evitar que acontecesse o que se verificou entre 1964 e 1967, e depois de 1967 em diante, com perseguição a parlamentares de oposição", pontua. 
Gustavo Liberaro
Advogado e professor de Direito da Unifor

"Isso não está acontecendo aqui. Não tem o mesmo cenário, não tem o mesmo pressuposto. A gente está acompanhando um desvio de finalidade grave na atuação parlamentar", defende.

Guilherme France considera que o que existe é uma tentativa, por parte do Congresso Nacional, de "manter os poderes aumentados que assumiu, especialmente aqui com relação a emendas parlamentares e ao controle sobre o orçamento, sem receber ou sem estar sujeito a um nível proporcional de controle e eventual responsabilização".

O aumento da ingerência do Congresso Nacional sobre o Orçamento federal resultou em um fortalecimento do legislativo, segue France. Um fortalecimento que, agora, "se cimenta com a obstaculização de qualquer processo de responsabilização". 

"O que mantém os parlamentares muito interessados nas emendas parlamentares é que eles controlam esses recursos e já há hoje poucas chances de serem responsabilizados, porque precisa se afigurar algum tipo de recebimento de recursos indevidos, propina etc. Isso em um longo processo de execução das emendas parlamentares, às vezes é até difícil de comprovar. Com uma eventual necessidade de aprovação da Câmara ou do Senado para que o processo criminal siga, as chances de qualquer investigação não levar à responsabilização são altas".
Guilherme France
Advogado e consultor da Transparência Internacional

Os juristas lembram que, atualmente, o Congresso dispõe de mecanismos para suspender ações penais contra parlamentares durante o período do mandato — prazo que inicia na diplomação. Inclusive, a ferramenta foi usada para paralisar três processos respondidos pelo deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ).

Um dos integrantes do "núcleo 1" da trama golpista de 2022, cujo julgamento aconteceu nas duas primeiras semanas de setembro, Ramagem foi condenado por apenas dois crimes, já que as demais ações penais estão suspensas. Os outros sete integrantes do grupo, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foram condenados por cinco crimes

"Com sistema atual, se a casa legislativa entende que deva suspender o processo, porque o parlamentar está sendo perseguido, a Casa se reúne, vota e aprova a suspensão do processo criminal até o fim do mandato. Já é proteção suficiente para que ele possa terminar o mandato", considera Liberaro. 

Para France, no entanto, os parlamentares querem diminuir o "peso político" das votações sobre processos criminais. "Conscientes de que o peso político de aprovar a suspensão de um processo é muito maior do que o peso de suspender, do que simplesmente não autorizar, eles estão buscando essa sistemática que permite inclusive que a sua omissão já resulte na ausência de avanço do processo de investigação do processo criminal", afirma.

Qual o alcance da PEC da Blindagem?

"Não tem limitação no texto da PEC para qual tipo de infração penal que necessitaria de autorização pelo Supremo", resume o professor de processo e doutorando na Universidade de Genebra, Thales Cassiano. Portanto, continua ele, "para todas as ações penais" seria necessária a autorização. 

"A gente pode falar desde crimes no contexto da lei de violência doméstica ou eventualmente de organização criminosa. Ou seja, é bastante ampla a possibilidade de suspender uma ação penal em relação ao Supremo Tribunal Federal", reforça.

Ou seja, reforça Gustavo Liberaro, com a PEC da Blindagem, a autorização será feita para "todo tipo de processo criminal que a gente possa imaginar, inclusive aqueles da mais alta gravidade. "Já tivemos histórico de aparecer parlamentar envolvido com tráfico de droga, sequestro de pessoa, homicídio", lembra o professor.

No final da década de 1990, por exemplo, o Supremo precisou pedir autorização para abrir um processo judicial contra o então deputado federal Hildebrando Pascoal, acusado de chefiar a organização de um esquadrão da morte e que acabou ficando conhecido como "deputado da motosserra". A autorização não chegou nem a ser votada, sendo travada por semanas no Congresso. Ao invés disso, o deputado foi cassado e processado na 1ª instância da Justiça, sendo condenado a 100 anos de prisão. 

Também acusado de homicídio, o então deputado Nobel Moura também teve o processo travado por semanas pelo Congresso Nacional. Mesmo caso de Ronaldo Cunha Lima, também deputado federal, que foi privilegiado pela regra dois anos depois de ser acusado pelo assassinato de um rival político. Ele contou com a imunidade por mais oito anos. 

Ao histórico de autorizações travadas ou até mesmo rejeitadas, se junta um cenário criminal distinto do de 2001, quando a regra foi extinta. Uma das maiores preocupações são as facções criminosas

"Tem feito surgir as críticas no sentido de que isso (a PEC da Blindagem) acabaria configurando uma carta branca para que as facções criminosas, para que o crime organizado mais violento, procurasse um jeito, que já tem tentado, de se infiltrar dentro do sistema político".
Gustavo Liberaro
Advogado e professor de Direito da Unifor

Deputados estaduais e distritais 

Um dos exemplos citados é do deputado estadual do Rio de Janeiro, TH Joias. Ele foi preso por suspeita de integrar um grupo criminoso ligado ao tráfico de drogas e ao comércio ilegal de armas de fogo de uso restrito. O grupo manteria um vínculo estável com a facção criminosa Comando Vermelho. 

Casos semelhantes ao do deputado estadual poderiam ser abarcados pela PEC da Blindagem. Isso porque parlamentares estaduais e distritais também seguiram as regras estabelecidas pela proposta, ou seja, para serem processados, seria necessário antes que a casa legislativa autorizasse. 

Guilherme France destaca que são justamente os deputados estaduais aqueles com maior ingerência sobre as políticas públicas de segurança pública, já que hoje esse é um tema centralizado no Estado. As investigações contra o crime organizado, por exemplo, são feitas pela Polícia Civil e Militar e o orçamento desses órgãos passa por assembleias legislativas.  

"Então, colocar um parlamentar, colocar um membro de uma organização criminosa na Assembleia Legislativa é muito interessante para uma organização criminosa. Esse membro vai conseguir interferir diretamente na política criminal e eventualmente até minar, de dentro, os esforços de combate ao crime organizado. E garantir que as chances de eventual responsabilização sejam ainda menos prováveis, aumenta esse incentivo".
Guilherme France
Advogado e consultor da Transparência Internacional

Presidente de partidos políticos

A PEC da Blindagem também traz uma "novidade" em termos de normas jurídicas: a ampliação do foro de prerrogativa, também chamado de foro privilegiado, para presidentes nacionais de partidos políticos com representação no Congresso Nacional. 

O trecho chegou a ser rejeitado em votação de destaques na terça-feira, mas acabou reincluído em manobra durante a sessão da quarta-feira (17). Em emenda aglutinativa, os deputados acrescentaram também a previsão de votação secreta — que também havia sido rejeitada no dia anterior. 

Thales Cassiano classifica a mudança como uma "inovação muito particular". "A admissão de quem é o presidente do partido político é interna corporis daqueles partidos. Isso pode ser muito facilmente utilizado para que uma investigação que esteja em curso passe a necessitar, por exemplo, de autorização de uma casa legislativa", considera.

Gustavo Liberaro é ainda mais enfático sobre o tema: "você pode de repente ter um Marcola sendo cogitado para presidente de partido, um Fernandinho Beira-Mar", exemplifica.

"A gente pode ter esse tipo de absurdo, claro não com essas figuras, mas esse tipo de absurdo de toda forma, porque o sujeito não precisa entrar numa disputa eleitoral, basta que o partido tenha deputados ou senadores e ele vai ter a prerrogativa de ser julgado no STF, por exemplo", acrescenta. 

A PEC é inconstitucional?

Aprovada pela Câmara dos Deputados, a PEC da Blindagem ainda tem um longo caminho pela frente. Na chegada ao Senado Federal, o presidente da Casa, Davi Alcolumbre (União-AP), garantiu que ela terá o trâmite normal, sem urgência, e enviou a PEC para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). 

O presidente da CCJ, Otto Alencar (PSD-BA), criticou a proposta, que classificou como "desrespeito". "A PEC não pode ser modificada no Senado e retornar para a Câmara. Ela tem que ser enterrada no Senado, acabar lá, destruí-la lá", disse.

Além disso, diversas bancadas partidárias têm mostrado resistência e até mesmo fechado questão, como foi o caso do MDB, pela rejeição da proposta. 

Apesar disso, parlamentares contrários à PEC da Blindagem já acionaram o STF questionando o trâmite da proposta na Câmara dos Deputados ou falam sobre tentar derrubá-la por inconstitucionalidade, caso consiga ser aprovada no Congresso Nacional. 

Gustavo Liberaro considera que "os próximos cenários são bastante delicados", no caso do Senado "não conseguir colocar em banho maria o andamento" da PEC. "O STF vai ser demandado a continuar tendo uma postura assertiva no controle de constitucionalidade dessas medidas, o que pode deflagrar ali um conflito mais intenso do que o que já há", pontua. 

Thales Cassiano considera que é possível o "controle de constitucionalidade de uma PEC" por parte do Supremo. No entanto, ele também reforça a necessidade de "cautela" para declarar a inconstitucionalidade de uma medida como essa. "Em último caso, são os deputados e senadores legitimados a alterar a Constituição Federal", pontua.

"Mas já aconteceu e, nesse caso específico, parece que a alteração é incongruente com outros princípios fundamentais, que são fundantes do Estado, a exemplo da separação de poderes e também em relação a algumas cláusulas pétreas. Então, se for haver um controle de constitucionalidade, muito provavelmente o argumento é no sentido de que ela é autofágica. Permitir uma PEC dessa natureza seria permitir que o Congresso Nacional pudesse desvirtuar a própria Constituição".
Thales Cassiano
Professor de processo penal e doutorando da Universidade de Genebra

Guilherme France é menos otimista. Apesar de existir a chance, argumenta ele, é preciso lembrar que parte das regras previstas na PEC da Blindagem já foram parte da própria Constituição de 1988. "Então, a gente não tem nenhuma garantia de que o Supremo vai declarar inconstitucionalidade disso como um todo", aponta, acrescentando que acredita que devem ser discutidas questões específicas da legislação. "Mas a gente tem ainda muita preocupação sobre como isso vai ser interpretado".

Por enquanto, as tratativas seguem na seara legislativa, inclusive com repercussões negativas sobre a votação feita na Câmara dos Deputados, ao aprovar a PEC da Blindagem, e pressão para que o assunto não continue a ser debatido por senadores. 

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22.09.2025