Lembrado pelo trabalho com pessoas em situação de rua, sacerdote compartilha o que entende do amor e como vive algo tão concreto quanto revolucionário.
Figura nacionalmente conhecida por encampar defesa e trabalho a favor dos pobres, sujos e desamparados, para ele o amor é dedicar a vida ao outro.
Tem a ver com entrega livre, sem requisitos nem concessões, embora não menos desafios. Amar também é um descentrar de si, abrir espaço para o redor. Exige mudança e comprometimento. Em uma cultura tão autocentrada, mais ainda: vontade.
“É processo contínuo, não é estático. Não tem um momento que acontece, tem que acontecer sempre. Chega a ser conflitivo: ora você vai, ora você volta, nunca será o mesmo”, reflete.
Das memórias dos primeiros anos, recorda quando estava no seminário, em Bragança Paulista, e precisava ligar para a família. Demorava horas.
O aparelho, movido à manivela, necessitava que uma telefonista atendesse e transmitisse a ligação. Chegava a ser engraçado. Quando passeia por essa lembrança, o sacerdote não deixa de traçar paralelos com a própria filosofia de vida e tempo que cultivou em si. Tem a ver com fluxos: uma vez que tudo muda no mundo, o amor precisa encontrar espaço para caber.
“O amor é dinâmico, muda à medida que os conflitos aumentam, a população, a repressão, a violência. Quando tudo isso fica maior, também aumentam a generosidade, a solidariedade, a misericórdia, a compaixão”. Talvez seja esta a maior prova do gostar: encontrar o divino nas sombras e luzes do humano. Inspirar qualquer tipo de paz, de sentido.
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Não é fácil. Lidar com os dilemas da população em situação de rua e, sobretudo, com quem age contra ela, é missão hercúlea. Ataques frontais a padre Júlio se tornaram frequentes nos últimos anos, muito em virtude da polarização política nacional e de visões distorcidas sobre o papel da Igreja e dos cristãos no tecido social brasileiro.
Ele não desiste, porém. Acredita que nenhum de nós pode dizer que está pronto. Nenhum de nós aprendeu a morrer. É como nasce a extraordinária chance para perceber o amor com mais nitidez no cotidiano. Fazer valer o versículo da primeira carta de São Paulo aos Coríntios – espécie de lema do religioso: “Deus escolhe o que é fraco para confundir o que é forte”.
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“Isso me guia, mas você não vê o amor com nitidez todos os dias. Às vezes, sim, ele é bem nítido, quando se está mais fragilizado ou discernindo. A força dessa busca e desse ensinamento está aí. A gente precisa estar atento”. Vigilante inclusive para quando o amor balançar. Feito tudo na vida, ele também treme, se confunde, vira do avesso.
Para padre Júlio, essa turbulência é resultado de idealizações – quando, na verdade, amar envolve concretude, fisionomia, nome e circunstâncias, bem distante de algo etéreo. “Às vezes você idealiza, esperando uma resposta, mesmo que ela não venha. Na Pastoral do Povo da Rua, é possível sentir esse amor concreto de diferentes formas. Afinal, é uma população também atingida pela ideologia dominante, pelo egoísmo, pelo individualismo, por várias situações”.
Não são anjos nem demônios: pessoas. Tudo aquilo que perpassa a vida de cada um reverbera na deles também – medo, alegria, fome, coragem, fúria, disposição. Essa visão tão profunda quanto humana traz a padre Júlio duas responsabilidades: a de continuar os projetos e ações que já iniciou; e ter a plena visão de que o amor não é unanimidade. Também traz divisão.
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“Se você ama aqueles que são rejeitados, você vai ser rejeitado; se ama os que são derrotados, será derrotado também. Segundo um biblista que gosto muito, o amor é injusto. Ele diz: ‘Se é justo, não é amor’. Justiça tem a ver com o que é seu de direito, que você merece. O amor está em outra faixa: algumas coisas não são nossas, não merecemos, mas precisamos”.
A fala é lúcida o suficiente para perceber que ele também é idealizado por vários Brasil afora. Acham que o sacerdote é capaz de tudo. Não é. “Lembro que um bispo muito amigo, Dom Celso Queiroz, dizia: ‘O tempo vai passando, e a gente vai perdendo: velocidade, acuidade, visão, audição, certas percepções’. Então tem coisas que a partir de determinado momento da vida, a gente vai perdendo”.
Felizmente, há sonhos. Ele não diz quais. Apenas que tem pesadelos na mesma frequência com que deseja realizar passos. Crê que todos sonhamos – embora lembremos mais das imagens que moram na franja da consciência – e quer ter tempo para continuar o que iniciou.
“Espero, trabalho e luto para que a vida seja mais feliz e digna para todos. A gente nunca sabe quanto tempo tem. Na dúvida, fica a intensidade de cada instante. Ainda vamos aprender a morrer, é um aprendizado único e há um momento único de cada um”.
Esta é a história de amor de padre Júlio Lancellotti pela humanidade. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.
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Cariri Ativo
01.10.2025