Mylena Gadelha e Nicolas Paulino
Crimes que violam a sexualidade de crianças e adolescentes – pessoas em pleno desenvolvimento – estão entre os que mais chocam a sociedade. Contudo, eles não são incomuns: há anos, eles representam praticamente 8 em cada 10 crimes sexuais registrados pelas autoridades policiais no Ceará.
Segundo dados da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), analisados pelo Diário do Nordeste, os percentuais oscilam entre 75% e 79% dos procedimentos realizados pela Polícia Civil que compreendem “todos os crimes de estupro, estupro de vulnerável e exploração sexual de menor”.
Enfrentar esse problema histórico envolve, primeiro, entender e respeitar crianças e adolescentes enquanto sujeitos detentores de direitos. Antes enxergados como pequenos adultos, eles passaram a contar com proteção legal no Brasil há menos de 100 anos, ainda que no contexto de “menores” desassistidos e abandonados.
O termo “menor”, por vezes ainda utilizado para se referir a essa parcela da população, reproduz a noção de incapacidade na infância, hoje é considerado ultrapassado por remeter ao extinto Código de Menores, de 1927 – substituído, em 1990, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Essa é a segunda reportagem da série “Infância ameaçada”, que discute como e por que crimes contra a sexualidade de jovens continuam ocorrendo, apesar de condenados pela sociedade, as vias de acolhimento para vítimas e as ações para preveni-los.
Psicólogo do Instituto Terre des Hommes (TdH Brasil), Pedro Alisson reafirma que dados do Atlas da Violência e do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que a maioria dos casos de abuso sexual acontece dentro de casa – um local justamente onde, muitas vezes, impera o silêncio.
dos abusos de meninas no Brasil, em 2023, ocorreram no ambiente residencial. Os dados são do estudo “Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2025”, da Fundação Abrinq.
“Não é curioso que o mesmo ambiente que rejeita falar sobre educação sexual seja, muitas vezes, o lugar onde o abuso acontece?”, questiona.
Na observação dele, muitos casos podem ser acobertados por outros familiares porque quem comete a violência é quem sustenta a família, gerando situações de medo, vergonha ou dependência financeira. Em outros casos, o agressor é um adolescente, e a família teme a responsabilização e a internação no sistema socioeducativo.
Independente do motivo, as crianças continuam sendo violentadas, “e essa é uma das formas mais terríveis de violência que existem”, ressalta Pedro.

“É um problema multifatorial, não tem como apontar só uma causa”, reforça Karine Leopércio, promotora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Saúde (Caosaúde) do Ministério Público do Ceará (MPCE).
Para ela, é difícil tratar o problema porque ele também esbarra em questões históricas e sociais dos agressores, como dificuldades financeiras, problemas com abuso de substâncias e até mesmo violências sofridas por eles próprios.
“Tem adultos que normalizaram aquela situação. Eles repetem principalmente porque não têm consciência de que aquilo é algo errado, porque vivenciaram a vida toda e é a forma de agir que eles aprenderam. Então, acabam replicando aquilo”, entende.
Consequências e sequelas do abuso sexual
Tanto o psicólogo quanto a promotora lembram que a violência sexual gera repercussões danosas para o desenvolvimento infantil, incluindo sinais como:
- automutilação
- isolamento social
- ideação suicida
- dificuldade de confiança em adultos
- alergias
- problemas respiratórios
- problemas alimentares
- distúrbios de sono
- maior agressividade
- eliminação involuntária de urina (enurese) ou de fezes (encoprese)
Pedro Alisson também lembra que, quando uma criança está em situação de abuso sexual, é muito provável que o desenvolvimento sexual dela aconteça de forma acelerada e precoce.
Há crianças que começam a querer se comportar como adultos, a imitar atitudes que não são próprias da idade. Até certo ponto isso é natural, faz parte da aprendizagem e da observação, mas é importante perceber os limites.
De forma geral, a criança passa por um desenvolvimento psicossexual natural e progressivo desde o nascimento, descobrindo as primeiras sensações e o próprio corpo através do toque. Porém, alguns comportamentos precisam ser vistos com atenção.
“Por exemplo: não é esperado que uma criança de 10 ou 12 anos reproduza movimentos que simulem uma relação sexual. Isso não é natural. Quando ela imita comportamentos diretamente ligados a um ato sexual, isso é um sinal de alerta”, diz.
Segundo o psicólogo, crianças que demonstram curiosidade excessiva em tocar nas partes íntimas de outras pessoas também exigem atenção.
Cuidado em todas as regiões
Com notificações pulverizadas em todo o Ceará, a promotora Karine Leopércio acompanha a rede assistencial de saúde para sensibilizar gestores e profissionais sobre a identificação precoce dos casos, uma vez que não se pode tratar somente os sintomas. O contexto também precisa ser investigado.
Um dos principais pontos desse trabalho é não revitimizar a criança ou adolescente, forçando-os a relembrar a violência em detalhes, e fazer os devidos encaminhamentos obrigatórios por lei, seja para o Conselho Tutelar ou outro sistema de proteção.
“É importante ter acesso àquela informação e quebrar o ciclo de violência, porque muitas vezes, quando o profissional de saúde se omite, pode até facilitar que haja uma situação de violência mais extrema depois”, alerta.
A violência sexual deixa maiores sequelas porque cria uma confusão dentro da criança. Aquela pessoa que é para ser o referencial que ela tem de família, de proteção, é quem agride, é quem invade, é quem constrange. Isso gera nela uma série de distúrbios que acabam repercutindo no desenvolvimento.
Em resposta a essa discussão, a Secretaria Estadual da Saúde (Sesa) organizou, em 2024, o primeiro Manual do Cuidado Integral à Saúde da Mulher, Criança e Adolescente em Situação de Violência no Ceará.
O documento fornece orientações técnicas e descentraliza os cuidados para todas as regiões de saúde, para que o atendimento em qualquer uma delas “seja diferenciado, qualificado e acima de tudo humanizado”. Uma das recomendações é a adoção de salas específicas para esse acolhimento.
Ele também divulga a Rede Ponto de Luz, especializada em serviços ambulatoriais e hospitalares com profilaxias para o acesso à prevenção de gravidez indesejada e/ou Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). Atualmente, ela está nas seguintes unidades:
- Hospital Geral de Fortaleza (HGF): Programa Flor de Lótus
- Hospital Infantil Albert Sabin (Hias): Ponto de Luz Hias
- Hospital Geral César Cals (HGCC): Programa Vitória Régia
- Hospital Distrital Gonzaga Mota (Gonzaguinha) José Walter: SAEV
- Maternidade Escola Assis Chateaubriand (MEAC): Programa Superando Barreiras
- Hospital Regional Norte (HRN): Ponto de Luz HRN
A equipe responsável pela iniciativa reforça que profissionais de todas as redes, inclusive na Atenção Primária dos municípios, precisam passar por capacitação para lidar com esses casos e evitar que eles passem despercebidos.

Trabalho com os agressores
Os crimes sexuais contra crianças e adolescentes têm relação direta com o oportunismo para a satisfação sexual, segundo o médico psiquiatra Henrique Luz, coordenador do Atendimento Ambulatorial em Sexualidade Humana do Ceará (Atash) e membro do Departamento de Parafilias da Associação Brasileira de Estudos em Medicina e Saúde Sexual (Abemss).
Segundo o especialista, numa sociedade com discursos de misoginia (ódio a mulheres), machismo e sexismo (ideia de superioridade masculina), mulheres e até crianças são entendidas como posses dos homens.
“Há essa ideia de que o outro é sua propriedade e que pode ser utilizado, inclusive sexualmente. Então, esses avós, pais, tios, vão, de alguma forma, expressar o sentimento de dominação e de controle pela via sexual”, aborda.
Nesses casos, não há um interesse específico em faixas etárias mais baixas, mas o aproveitamento de alguma oportunidade para dar vazão a impulsos sexuais..
“Eles precisam reforçar a ideia de que detêm o poder, de que são potentes do ponto de vista social e sexual e que podem usufruir de quem quer que seja. Sendo uma criança, que não vai ter condições de falar ou de expressar o que aconteceu, isso facilita”, afirma o especialista.
Ainda segundo Henrique, a maioria desses crimes não tem a ver com pedofilia, um transtorno psiquiátrico descrito na Classificação Internacional de Doenças (CID) e caracterizado pelo interesse compulsivo por atividades sexuais envolvendo crianças ou adolescentes. Contudo, o diagnóstico é complexo e abrange uma parcela pequena da população.
Personalidades mais narcisistas ou mais antissociais, que são mais popularmente conhecidas como ‘psicopatas’, não vão ter uma conexão emocional com outro. Para elas, não interessa a subjetividade do outro, mas exercer meu desejo.
Por isso, além da assistência às vítimas, é preciso desenvolver trabalho com os agressores sexuais para prevenir a reincidência dos crimes. Ainda incipiente no Brasil, esse modelo já é colocado em prática em outros países, como Portugal, Suécia e Alemanha, de maneira experimental, ligada a instituições de ensino e pesquisa.
Contudo, segundo o psiquiatra, o acompanhamento nem sempre trará resultados positivos. Isso depende de fatores psicológicos individuais, como o Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS).
Para ser mais efetiva, essa intervenção especializada precisa, de alguma forma, causar angústia, sofrimento ou empatia em relação ao outro que foi vitimizado. Ou seja, o indivíduo precisa ser questionado a modificar sua posição diante da situação.
Rede de repressão e assistência
Para reforçar o combate a qualquer tipo de violência contra crianças e adolescentes, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) afirma manter estratégias de prevenção e repressão aos crimes sexuais.
A Polícia Civil (PCCE), dispõe da Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente (Dceca) e da Divisão de Proteção ao Estudante (Dipre). Em Fortaleza, as investigações são conduzidas pela Dceca; já no interior, pelas unidades locais.
Em complemento, a Polícia Militar (PMCE) atua com o Grupo de Segurança Escolar (GSE) em ações de prevenção. Por sua vez, o Comando de Prevenção e Apoio às Comunidades (Copac) possui o Grupo de Apoio às Vítimas de Violência (Gavv), que acompanha pessoas violentadas.
Por fim, o Núcleo de Atendimento à Vítima (NAV), instalado na Casa da Criança e do Adolescente, no bairro São João do Tauape, em Fortaleza, atende vítimas de violência sexual e realiza perícias médicas e coletas necessárias para as investigações.
A Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce) também conta com o Núcleo de Atendimento Especial à Mulher, Criança e Adolescente (Namca), que fornece acolhimento durante a realização de exames para constatar esse tipo de violência.
Como denunciar abuso sexual
Em casos de suspeitas relacionadas à violação de direitos de crianças e adolescentes, denúncias podem ser feitas nos seguintes órgãos:
- Polícia Militar - 190;
- Secretaria Nacional dos Direitos Humanos - Disque 100 ou WhatsApp (61) 99656-5008
- Conselho Tutelar de Fortaleza, - (85) 3238.1828;
- Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente - (85) 3101-2044/2045;
- Ministério Público do Ceará - 127;
- Casa da Criança e do Adolescente - (85) 98736-4088 e (85) 98976-8946.
Créditos
diariodonordeste.verdesmares.com.br
Cariri Ativo
31.10.2025
 


 
 





 

 
 
 
 
