Não é raro ouvir relatos de
pessoas que recorrem a medicamentos psicotrópicos (entre eles, o zolpidem) sem
o acompanhamento médico adequado. Prática traz riscos para a saúde
Autor Agência Einstein
Aquela dificuldade de adormecer,
de permanecer dormindo ou de voltar a dormir após um despertar indesejado é
conhecida por quase metade dos paulistanos. O Estudo Epidemiológico do Sono
(Episono), divulgado em 2023, aponta que 45% dos moradores da cidade de São
Paulo sofrem de insônia. Diante do inconveniente de não conseguir dormir, não é
raro ouvir relatos de pessoas que recorrem a medicamentos psicotrópicos (entre
eles, o zolpidem e a zopiclona) sem o acompanhamento médico adequado.
O uso indiscriminado desses
remédios e os riscos da automedicação chamaram a atenção da comunidade médica e
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que decidiu tornar mais
rígida a prescrição dessas drogas, para frear o uso abusivo.
Esses produtos são chamados de “medicamentos da classe Z” (já
que os nomes começam com essa letra) e são recomendados para pacientes com
insônia de curto prazo, ou seja, quando está acontecendo há menos de 90 dias.
Eles são hipnóticos e sedativos que atuam especificamente no receptor cerebral
chamado Gaba, que é o principal receptor inibitório do sistema nervoso central.
Assim, funcionam como um botão de “liga e desliga”, induzindo o sono de forma
rápida — diferente dos benzodiazepínicos (como clonazepam e nitrazepam), que
agem também contra a ansiedade.
"A diferença entre um e outro é que as ‘drogas
Z’ atuam apenas nos receptores que nos fazem dormir, sendo muito utilizadas
para a insônia, ao passo que os benzodiazepínicos têm ações mais amplas"
Letícia
Soster, neurologista do Grupo Médico Assistencial do Sono do Hospital Israelita
Albert Einstein
E é pelo seu efeito rápido – e
pela promessa de acordar revigorado, sem a sensação de ressaca – que o uso
irregular é perigoso, especialmente para quem se automedica.
Segundo Soster, por se tratar de uma medicação com início de ação
rápida, ela deve ser utilizada só com a prescrição médica e imediatamente antes
do horário de dormir, quando a pessoa já está deitada, para não haver o risco
de comportamentos inadequados.
“O risco vai aumentar se a pessoa tomar esse medicamento e não estiver
preparada para dormir. Alguns receptores serão desligados e, se ela continuar
acordada, usando, por exemplo, o computador, podem acontecer comportamentos
anormais, dos quais ela não se lembrará depois”, destaca a neurologista, ao
citar casos de abuso e até relatos de pessoas que fizeram compras de produtos
ou de pacotes de viagem, discutiram com o cônjuge e outras situações
semelhantes.
Também há o risco de dependência química da medicação, se ela for usada
de maneira inadequada e sem acompanhamento. De acordo com Soster, o primeiro
indício é comportamental, quando o paciente começa a acreditar que só consegue
dormir se tomar o remédio.
"As drogas Z têm um mecanismo químico de
dependência muito importante porque elas agem bloqueando os receptores
gabaérgicos. O problema é que eles funcionam como um mecanismo de encaixe e,
com o tempo, esse encaixe passa a funcionar e fazer adormecer apenas quando tem
o receptor encaixado"
Letícia
Soster
Isso significa que, com uso contínuo e sem o acompanhamento adequado, a
pessoa começa a sentir a necessidade de uma dose um pouco maior da medicação, e
a aumenta por contra própria, sem o uso de outras estratégias essenciais para o
tratamento da insônia.
“A pessoa vai precisar cada vez mais aumentar as doses e é nesse momento
que acontece o uso indiscriminado e abusivo, como temos visto. Foi isso o que
motivou todo o movimento para dificultar o acesso à medicação”, analisa a
especialista.
Segundo a neurologista Márcia Assis, vice-presidente da Associação
Brasileira do Sono (ABS), apesar de os medicamentos Z serem considerados
seguros, é preciso ficar alerta para casos de sonolência diurna, especialmente
em idosos e mulheres, que devem usar doses menores.
A medicação tampouco deve ser associada ao uso de bebida alcoólica e
outros sedativos e hipnóticos. “A dependência e a abstinência são efeitos
indesejáveis observados nos casos de abuso, ao lado de alterações
comportamentais durante o sono. É importante lembrar, no entanto, que as
situações de risco ocorrem em quem utiliza doses além das recomendadas. O uso
regular, com a supervisão médica, não tem riscos”, frisa.
Zolpidem e drogas Z: Prescrição
passa a ser mais rigorosa
A decisão da Anvisa de tornar a prescrição do zolpidem mais rigorosa
levou em consideração, inclusive, o crescimento no consumo da substância nos
últimos anos e a constatação do aumento das ocorrências de eventos adversos
relacionados a ele. Dados do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos
(Sindusfarma) apontam o aumento de 15,9% em quatro anos: foram vendidas 15,7
milhões de unidades da medicação entre maio de 2019 e abril de 2020 e 18,2
milhões de maio de 2023 a abril de 2024.
Com a nova resolução, a prescrição de todo medicamento que contenha
zolpidem ou zopiclona, independentemente da concentração, deverá ser feita
na receita especial B, de talonário azul, que é mais controlada e
só pode ser emitida por profissionais previamente cadastrados na vigilância
sanitária local – em geral, especialistas em psiquiatria e neurologia.
Além disso, os fabricantes deverão mudar a embalagem, alterando
a tarja de cor vermelha para a preta.
Até então, apesar de o produto já integrar a lista de substâncias
psicotrópicas e controladas, havia uma brecha no texto que permitia prescrição
de até 10 mg em receitas brancas de duas vias, por qualquer médico, sem a
necessidade de cadastro prévio. As novas regras entram em vigor no dia 1º de
agosto.
"Esperamos que a nova regulamentação auxilie
na redução do uso indiscriminado.Esta medida também aumenta a reflexão e a
preocupação com a necessidade do tratamento adequado da insônia. Ele não é
feito exclusivamente com o uso de medicação. Além disso, quando for indicada,
ela deve ser prescrita por um profissional especializado, que vai avaliar o
tipo de insônia, possíveis causas, os fatores que perpetuam o problema, as
doenças associadas e outros dados médicos"
Marcia
Assis, neurologista
A neurologista lembra que o tratamento medicamentoso da insônia pode até
ser uma escolha, mas sempre deve ser associado a medidas não farmacológicas,
como a redução do uso de telas e a prática de atividade física.
Melatonina também preocupa
Outro produto que tem sido usado de forma indiscriminada e sem o
acompanhamento médico para o tratamento da insônia é a melatonina,
vendida em farmácias sob a forma de suplemento alimentar (em comprimidos ou em
gotas).
Popularmente chamada de “hormônio do sono”, a melatonina é um hormônio
produzido de forma natural pelo corpo e é muito importante para a regulação do
ritmo circadiano, ou seja, o ciclo de vigília e sono – o nosso relógio
biológico. Por não ser considerada um medicamento, a melatonina não segue os
mesmos critérios de segurança exigidos para que uma medicação chegue ao
mercado.
Embora a Anvisa tenha limitado a quantidade máxima de uma unidade de
dose de melatonina a 0,21 mg, nada impede que o paciente use muito mais. “Há
relatos de pacientes que tomam 10, 20, 30 comprimidos de melatonina para
dormir”, conta Soster, ao afirmar que existem poucos dados sobre os efeitos
colaterais a longo prazo do uso em altas doses e sem controle.
“Por não ser um medicamento, é muito mais difícil supervisão e o
registro dos eventos adversos”, observa a médica do Einstein.
Insônia: o que fazer?
A recomendação das especialistas para quando houver sinais de insônia é
buscar um médico e fazer uma avaliação – só um especialista vai poder
falar se o uso de alguma medicação é necessário ou não. Não existe um
“número mágico” para a quantidade mínima de horas que devem ser dormidas, por
isso a percepção do paciente é fundamental.
O primeiro sinal de que o sono não vai bem é perceber os prejuízos na
rotina durante o dia: podem ser psíquicos e, emocionais, relacionados a
alterações no humor, muita taquicardia, cansaço e, sonolência, entre outros.
“São muitos os sintomas que se relacionam a uma noite de sono mal ou
pouco dormida. Eles são bastante amplos e pouco específicos. A dica
mais valiosa é observar como você acorda: se já acorda cansado,
preocupado com o sono, ou com cefaleia, quando deveria estar mais relaxado,
isso é um sinal de que a noite de sono não está adequada”, destaca Soster.
Para conseguir ter uma noite revigorante de sono, não há segredo: é
preciso iniciar o processo de higiene do sono já quando acorda.
Segundo Soster, é preciso sinalizar para o corpo que o sono acabou, ter
contato com a luz do sol, realizar atividade física para “cansar” o suficiente,
manter horários regulares para as refeições e outras atividades cotidianas.
Próximo da hora de dormir, é preciso mostrar para o cérebro que é o
momento de desligar. As especialistas recomendam:
- não se expor à luz meia hora antes de se
deitar-se;
- manter atividades mais relaxantes;
- não usar a cama para trabalhar, estudar ou,
ver televisão;
- reduzir o uso de telas; e
- não levar preocupações para o travesseiro.
“Se não conseguir controlar os pensamentos, uma dica é anotá-los num
caderno e voltar para a cama apenas com sono. Esse conjunto de hábitos nos
ajuda a ter um sono saudável”, finaliza Soster. (Com Fernanda Bassette,
da Agência Einstein)
opovo.com.br
Cariri Ativo
14.06.2024