Especialistas e até gestor da Educação no Ceará apontam que inserção da temática nas salas de aula é “pontual”.
O tema é avaliado por educadores como rico, diverso e fundamental – e não deveria ser novidade para os estudantes. Duas leis federais, de 2003 e de 2008, determinam o ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira e indígena como obrigatório em todas as escolas públicas e privadas do País.
Na prática, porém, a inclusão dos conteúdos no currículo ainda não acontece, segundo professores, pesquisadores e um gestor ouvidos pelo Diário do Nordeste. Os principais motivos, segundo eles, são falta de formação dos docentes e de recursos específicos para a implementação.
As duas leis federais que pesam sobre o ensino do Ceará e do Brasil nessa temática são:
- Lei nº 10.639, de 2003: institui a obrigatoriedade do ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira nas escolas públicas e privadas.
- Lei nº 11.645, de 2008: incluiu o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena no currículo oficial das redes de ensino públicas e particulares.
O Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou, em 2004, um parecer propondo as “Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africanas e Afro-Brasileiras”.
A legislação determina que o currículo deve incluir nos conteúdos, “resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”:
- História da África e dos Africanos;
- A luta dos negros no Brasil;
- A cultura negra brasileira;
- O negro na formação da sociedade nacional.
Uma pesquisa do Instituto Alana em 2022 mostrou que 53% das secretarias municipais de educação que responderam ao estudo “realizam ações para implementação da Lei 10.639 de forma menos estruturada e esporádica, geralmente atreladas a projetos isolados ou em datas comemorativas, como durante o mês do Dia da Consciência Negra”.
“Há também o grupo que admite não realizar nenhum tipo de ação para o cumprimento da legislação, chegando a 18% dos respondentes”, acrescenta o relatório da pesquisa.
Entre os entraves citados pelos dirigentes, estão “a dificuldade dos profissionais em inserir a temática nos currículos e projetos escolares, a ausência de informação e orientação e a falta de planejamento permanente e constante em torno da agenda antirracista”.
A reportagem questionou ao Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) se o órgão possui alguma atuação no assunto, sobretudo monitorando e estimulando a aplicação da legislação pelas secretarias de Educação. O órgão não enviou resposta até a publicação deste texto.
‘Currículo colonizado’
A professora Cláudia Quilombola, mestre em Educação Brasileira e doutoranda em Educação, explica que a lei de 2003 “alterou a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional)” – e, portanto, a Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER) é básica e obrigatória.
Mas a docente, que atua na rede municipal de Caucaia, é categórica ao afirmar que “isso não acontece”: os conteúdos são relegados à “parte diversificada” do currículo, ficando de fora do oficial obrigatório abordado pelas disciplinas.
“O desenvolvimento da temática nas escolas brasileiras ainda não está implementado de fato. Temos um currículo pautado na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que orienta o que é obrigatório. Mas ela trata a educação racial de uma forma muito generalizada.”
Cláudia pontua que o termo “diversidade” é utilizado na BNCC para “abarcar tudo”, o que não contribui para a inserção concreta dos conteúdos nas salas de aula.
“Nós que estamos no dia a dia das escolas, que queremos que isso aconteça, sabemos que tem que dar nome às coisas: Educação para as Relações Étnico-Raciais é uma coisa, Educação Escolar Quilombola é outra. Educação do campo, indígena, e vários outros tipos de modalidade que não podem ser suprimidas em um único termo, ‘diversidade’”, critica.
O currículo ainda é colonizado em todos os espaços que tratam do ensino. É um projeto de colonização que traz esse curriculo imposto de cima pra baixo, com autores não-negros, estrangeiros, que não trazem a nossa realidade. Não podemos deixar de conhecê-los, mas precisamos valorizar o que nós temos.
Outro aspecto, como aponta a quilombola, é a falta de recursos para preparação dos professores. “Uma política pública sem recurso não acontece. Precisa ter recurso financeiro para contratar pessoas com experiência nessa questão, fazer as formações continuadas e específicas; bem como a aquisição de materiais específicos e bem avaliados”, lista.
A falta de acesso a formações impacta inclusive na capacidade de gestores e professores se desvencilharem do racismo estrutural para elaborar currículos que incluam, de fato, a temática afro-brasileira.
É o que avalia Kellynia Alves, professora de Diversidade étnico-racial e culturas afro-brasileiras e indígenas na Faculdade de Educação e Ciências Integradas do Sertão de Canindé, ligada à Universidade Estadual do Ceará (Uece).
“Temos o currículo formal e o ‘oculto’, que é aquele influenciado pelas práticas cotidianas das pessoas. Por mais que se crie uma lei, o racismo, a branquitude e todos esses movimentos vão tentar impedir a implementação e trazê-la de uma forma subalternizada, menos importante.”
A professora pontua que o que existe nas escolas, hoje, é um “trabalho de maneira pontual, uma atividade numa semana, no mês, em data comemorativa, e a vida segue sem alterar os valores que estruturam essa discriminação, a violência racial”.
“É preciso um currículo orgânico, que esteja em movimento, que valorize a memória e a influencia africana como uma dimensão importante da formação do povo brasileiro. A gente precisa reeducar as nossas relações étnico-raciais. O caminho é dialogar com todas as áreas de conhecimento – e não tratar como se fosse um currículo turístico”, complementa.
‘Educadores não conhecem a lei’
Um diagnóstico feito pela Secretaria Estadual da Educação (Seduc) nas escolas da rede no Ceará identificou a “fragilidade da inserção desse tema nas salas de aula”, como reconhece Helder Nogueira, secretário executivo de Equidade e Direitos Humanos da Seduc.
Mesmo 21 anos após a sanção da lei que obriga a inclusão da herança africana nos assuntos ensinados a crianças e adolescentes, ela não existe de forma consistente entre os cearenses.
“Uma parte significativa dos educadores não conhece a lei. E o fato de ela prever uma inserção de forma transversal faz com que não fique bem estruturada no cotidiano da escola. Intensificamos esse trabalho pra que a gente consiga inserir de fato”, pontua Helder.
O secretário frisa que o foco das ações tem sido nas gestões escolares, “buscando inserir esses temas no cotidiano das escolas não só no currículo, mas olhando pra racialização dos dados de matrícula, incentivando as escolas a analisarem o perfil dos estudantes considerando a autodeclaração racial”.
Quanto à formação de professores para que tenham conhecimento e suporte ao tratar as questões étnico-raciais nas salas de aula, Helder reconhece que “é um desafio, porque existem muitas demandas nas escolas do ponto de vista de formação”.
Ele garante, contudo, que a Pasta tem promovido avaliações junto às escolas e formações para docentes de todas as áreas, “para que essa temática não seja considerada apenas na área de ciências humanas, e sim em todas”.
“Estamos realizando um processo de formação de gestores, com autoavaliação das escolas sobre essa temática: se já inseriu o que a lei prevê no projeto político-pedagógico, no currículo posto em prática e nas boas práticas pedagógicas que os professores desenvolvam”, cita.
Legado africano no Brasil
Reconhecer as africanidades que costuram o dia a dia da sociedade atual é, para a professora Cláudia Quilombola, a espinha dorsal do ensino sobre as relações étnico-raciais. O ponto de partida, ela afirma, “é descolonizar a nossa mente, processo que é doloroso”.
“Precisamos nos desconstruir e reconstruir novamente, nos dar a oportunidade de pensar, inclusive sobre as religiões de matriz africana”, destaca a professora da rede municipal de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza.
“Se isso for de fato implementado, os alunos vão se reconhecer. Porque a maioria da população é negra. É uma forma de acabar com o racismo perverso, porque as pessoas precisam valorizar e respeitar o outro que acham diferente. Começamos a mudar o olhar, ver que a nossa verdade não é a única e absoluta. Funciona, sim, se a gente souber como fazer”, sentencia.
A identificação dos próprios estudantes é, no ponto de vista da professora Kellynia Alves, uma fagulha para derrubar, aos poucos, a estrutura que invisibiliza a forte influência das matrizes africanas “na cultura, na ciência e em diferentes áreas de conhecimento no Ceará e no Brasil”.
“Não superamos ainda o trauma histórico que foi o escravismo no Brasil, esses valores estão entranhados na nossa cultura. E isso afeta também a abordagem do currículo para valorização das nossas matrizes africanas. O currículo às vezes ainda trata dessa cultura como adereço, não dá visibilidade à história da África”, lamenta.
O tema ter entrado em pauta em um exame nacional, opina Cláudia Quilombola, já é uma conquista.
“Esse tema ter caído na redação do Enem foi gratificante, porque é uma luta dos movimentos sociais de centenas de anos. Para que as escolas, universidades e todos os sistemas de ensino possam reconhecer e valorizar a contribuição da população negra em todos os aspectos da sociedade.”
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Cariri Ativo
06.11.2024