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Violência contra mulher na zona rural: sistema de saúde do Ceará notifica 4,5 mil casos em 11 anos

Violência contra mulher na zona rural: sistema de saúde do Ceará notifica 4,5 mil casos em 11 anos

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Legenda: Pesquisa da Fiocruz publicada na “Revista Brasileira de Epidemiologia” analisa dados sobre notificação de violência contra a mulher no sistema de saúde em todo o País
Foto: Cid Barbosa

Os dados são do Sistema de Informação de Agravos de Notificação, do Ministério da Saúde. Pesquisadoras destacam a importância de profissionais da saúde estarem preparados para perceber e encaminhar casos de violência.


Escrito por
Gabriela Custódiogabriela.custodio@svm.com.br


Jovens com idade entre 19 e 39 anos, sem instrução ou com baixa escolaridade, pardas, solteiras ou casadas. Esse é o perfil da maioria das vítimas de violência contra a mulher na zona rural do Ceará. Geralmente, são agressões físicas que ocorrem em casa e são praticadas pelo parceiro, mais de uma vez. Se essa é uma história que se repete em grandes centros ou no interior do País, essas mulheres enfrentam um obstáculo a mais: nem sempre elas têm por perto um braço institucional que possa ajudá-las a sair desse ciclo.

Entre 2011 e 2022, o sistema de saúde do Ceará notificou mais de 4,5 mil casos de violência contra mulheres que vivem na zona rural do Estado. Essas ocorrências dizem respeito apenas às mulheres que chegam a alguma unidade de saúde pública ou privada, por terem sofrido alguma agressão ou por motivos diversos, e em que o profissional suspeita ou confirma um caso de violência. Desde 2003, a Lei n.º 10.778 obriga que essas situações sejam comunicadas, em todo o País.

No período analisado, os casos aumentaram ano após ano. Houve apenas uma pequena redução em 2020, início da pandemia de Covid-19, sinalizando uma subnotificação que não ocorreu só naquele momento. Seja por terem como se locomover até uma unidade de saúde ou por não conseguirem romper o silêncio, as vítimas muitas vezes não registram essas violências.

“Esses casos que chegam provavelmente são bem graves, porque diminuíram na pandemia, mas não tanto. Ou seja, elas tiveram que romper o isolamento social e geográfico para chegar até o sistema de saúde porque realmente sofreram uma violência que não podiam mais ficar em casa”, afirma Luciane Stochero, nutricionista, doutora em Saúde Pública e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).


Ela é uma das autoras do estudo “Caracterização das notificações de violência contra as mulheres que vivem em contextos rurais no Brasil, de 2011 a 2020”, que foi publicado na  publicada na “Revista Brasileira de Epidemiologia” em dezembro do ano passado. A análise utiliza dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde.

Para conceder entrevista ao Diário do Nordeste, a pesquisadora selecionou os dados do Ceará e acrescentou informações sobre os anos de 2021 e 2022. Essas estatísticas mostram que a violência física foi a principal forma de agressão (43,6%) notificada no Estado ao longo dos 12 anos analisados, seguida pela lesão autoprovocada (24,9%) e pela violência psicológica (19,4%).

Sem apontar a vida na zona rural como um problema em si, Stochero destaca que essas áreas têm uma “organização geográfica, social e política” própria que potencializa o contexto da violência contra a mulher. Ela cita, por exemplo, o isolamento geográfico e a falta de equipamentos próprios para receber a mulher que passa por essa situação. Isso a leva a buscar delegacias comuns onde, muitas vezes, não há preparo para lidar com essas situações.

“Juntamente com uma questão de machismo, falta de preparo, patriarcalismo, a gente vê que essa mulher vai sofrer uma segunda violência, uma violência institucional. Ela não vai voltar, muitas vezes, para esse local de segurança e o próximo passo, às vezes, infelizmente, é acabar chegando ao hospital já muito machucada ou vindo a óbito”, afirma a pesquisadora.

Esse isolamento, muitas vezes, dificulta que outras pessoas percebam sinais de que algo não está bem com a mulher, sejam marcas físicas da agressão ou mudanças de humor. “Essa mulher depende de quem comete a violência para levá-la até algum tipo de serviço”, complementa Emiliana Cristina Melo, professora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem em Atenção Primária à Saúde da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), que pesquisa a temática com Luciane Stochero.

Além disso, em cidades menores, acontece de a pessoa que atende a vítima conhecer o agressor. Essa é uma questão presente em atendimentos que Emiliana realiza com mulheres em um projeto de extensão desenvolvido em Bandeirantes, município do interior do Paraná onde vivem cerca de 31,2 mil habitantes.

“Elas falam: ‘já fiz quatro, cinco denúncias e nunca teve continuidade’. Elas conseguem continuidade quando fazem a denúncia e vão para o Ministério Público. Do contrário, é muito comum que quem atende essa mulher entenda que ‘amanhã ela muda de ideia’”, relata.

Esse “mudar de ideia”, segundo a professora, ocorre porque as mulheres se veem sem condições de prover moradia e alimentação para os filhos sozinha, por exemplo. “Ela repensa isso tudo, ouve a família — porque isso é bem cultural, a normalização — e desiste da queixa”, diz. Com isso, muitas vezes o ciclo de violência se perpetua e pode chegar ao feminicídio.

A autonomia financeira é apontada por Luciane como um aspecto importante para as mulheres poderem tomar decisões — inclusive para continuarem no relacionamento, mas sem depender do parceiro. Nesse processo, o resgate da autoestima também é um fator importante.

A questão financeira é muito importante. Você trabalhar a vida toda e ter que esperar a aposentadoria para ter o primeiro salário ou sofrer violência até que o esposo venha a falecer para ficar viúva, começar a receber pensão e ter uma vida livre… é muito tempo de sofrimento.
Luciane Stochero
Nutricionista, doutora em Saúde Pública e pesquisadora Fiocruz

“Envolve o sentimento da vítima pelo agressor, a dependência econômica, a família, os filhos. É uma complexidade que tem que ser enfrentada, e é por isso que o estado precisa chegar até essa mulher. Não dá para esperar só a iniciativa dela”, complementa a promotora Lívia Cristina Araújo, coordenadora do Núcleo Estadual de Gênero Pró-Mulher (Nuprom) do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE).

Mulheres do Sertão

É quase impossível que os encontros do projeto “Severinas Mulheres do Sertão” não toquem no tema da violência contra a mulher. Criada em 2018, a iniciativa realiza rodas de conversa em assentamentos e comunidades, oficinas em escolas públicas e exposições, além de um cineclube feminista itinerante em Quixeramobim. Da sobrecarga do trabalho reprodutivo ao assédio sexual, o tema sempre aparece nas discussões.

“Às vezes, nem queremos falar sobre isso, (mas) o assunto simplesmente surge e domina todo o espaço como uma grande nuvem espessa”, conta a educadora e pesquisadora Mayara Albuquerque. “Já ouvi relatos de meninas no Ensino Fundamental que convivem com abusadores, mulheres que estão na Educação de Jovens e Adultos e que só passavam batom depois de passarem pelo primeiro portão da escola e por aí vai”, continua.

Para Mayara, a falta de acesso à informação é a principal dificuldade em relação ao enfrentamento à violência contra a mulher em áreas rurais. “Em segundo plano e não menos importante, muitas mulheres não possuem internet em casa e nem mesmo um celular com área para fazer uma ligação pedindo socorro”, complementa.

Grupo de mulheres e meninas em encontro que visa o estímulo à leitura de autoras
Legenda: Uma das bandeiras do projeto Severinas é a difusão da literatura de autoria feminina
Foto: Reprodução

A demora para que os tipos de violência e como identificá-los no cotidiano chegue às mulheres dessas áreas também é citada pela professora Emiliana Cristina Melo. “Às vezes, atendendo uma mulher, na prática, (percebemos que) elas não entendem que estão sofrendo violência. Porque elas pensam, devido ao ambiente delas: ‘era assim com a minha avó, era assim com a minha mãe, eu sou casada e pertenço ao outro’”, explica.

Nesse contexto, Mayara explica que, enquanto algumas vítimas encontram acolhimento na comunidade, outras são desacreditadas e não recebem apoio. Muitas vezes, elas sentem-se isoladas e culpadas pelo que passaram. “Uma das nossas missões enquanto projeto é fortalecer o vínculo entre mulheres para poderem contar umas com as outras em casos de violência e em qualquer situação”, diz.

Para proteger as mulheres, Luciane Stochero aponta que os profissionais de saúde devem perceber-se como responsáveis por perceber, acolher, notificar e encaminhar casos de violência. É necessário, portanto, que haja formação desde a graduação e atualização ao longo da vida profissional. “Se a pessoa não fala e chega ao sistema de saúde por uma questão secundária — um problema crônico ou uma questão de saúde mental —, ela (a violência) precisa ser percebida”, defende.

“O Governo e as prefeituras precisam lembrar das mulheres que vivem nas zonas rurais e fazer ações de continuidade e não momentos pontuais. A comunidade precisa ser mobilizada e sensibilizada o ano todo”, defende Mayara Albuquerque. A educadora aponta ser necessário realizar mais ações, espaços de discussão e formação para as próprias mulheres serem “sementes e multiplicadoras em suas comunidades”.

Também é necessário educar os homens desde a infância, conforme os temas adequados para cada faixa etária, para promover o respeito entre todos, aponta Emiliana. “Se a gente conseguir trabalhar essa questão do respeito e do cuidado com o outro, já estamos fazendo esse enfrentamento para daqui a 10, 20 anos. (…) E essa criança leva isso para casa, ela já consegue interferir no adulto”, afirma.

Capacitação e sensibilização

“De fato, os equipamentos ficam mais distantes. Existe uma distância física, uma distância em termos de acesso à informação. E existe também um despreparo maior, uma falta de capacitação, uma falta de interação entre os órgãos que atuam ali naqueles municípios ou localidades”, concorda a promotora Lívia Cristina Araújo.

Para conseguir fazer com que a rede local, não especializada no atendimento a mulheres vítimas de violência, trabalhe “com o devido cuidado, com a urgência e com a prioridade” que esse problema demanda, é preciso oferecer a capacitação necessária e mostrar como funciona a integração entre os diferentes órgãos responsáveis. É para isso que foi criado o projeto “Rede Mulher”.

Em janeiro, uma reunião foi realizada no município de Itapajé, a 130,31 km de distância de Fortaleza, para dar início à iniciativa do MPCE. O projeto promove reuniões periódicas com representantes da rede de atendimento para estabelecer um fluxo para o encaminhamento de mulheres nessa situação a serviços de apoio psicológico, social e jurídico.

“Vamos lá e orientamos: ‘você pode acionar o Centro de Referência de Assistência Social, que está presente em todos os municípios, que tem que contar com psicólogo e assistente social, pelo menos, para uma rede básica do município funcionar. Essas pessoas que vão promover uma articulação com os equipamentos e vão se deslocar até aquela residência, vão fazer um estudo social. Ou a própria escola vai chamar os pais e as crianças para entender o contexto, vai chamar o Conselho Tutelar”, explica a promotora.

Todos esses profissionais que têm algum contato com as comunidades devem ter sensibilidade e iniciativa para buscar a rede de proteção, afirma. “Essas instituições precisam dialogar, precisam saber quem procurar, precisam se conhecer. (…) Uma pessoa que fez um atendimento no posto de saúde e visualizou uma situação de violência doméstica, ela pode comunicar a Secretaria de Saúde, usando a notificação compulsória, para que ela possa se articular aos demais órgãos de proteção social”, destaca.

A professora Emiliana Cristina Melo destaca a importância desse fluxo estar bem estabelecido e ser de conhecimento de todos os profissionais. “A gente precisa disso, porque a gente (se) perde. Quando você não está 100% envolvida nisso, você não sabe o que fazer. Então, precisamos dessa rede”, diz, destacando a própria experiência no projeto de extensão em Bandeirantes.

A promotora explica que o ideal seria levar o projeto “Rede Mulher” ao maior número possível de municípios, mas existe uma limitação de estrutura por parte do Ministério Público do Estado do Ceará. Por isso, a instituição está procurando as cidades com maiores índices de violência ou onde promotores engajados solicitem a iniciativa. “A ideia é que, com esse exemplo, os municípios consigam desenvolver sozinhos (o projeto). Mas, na medida da nossa estrutura, sempre que pudermos, vamos auxiliar”, finaliza.

Ônibus leva serviço de atenção às mulheres vítimas de violência para o Interior
Legenda: Unidade móvel de atendimento às mulheres vítimas de violência em Canindé
Foto: Drawlio Joca/Reprodução

Políticas públicas no Ceará

Em nota, a Secretaria das Mulheres destaca o programa Ceará Por Elas, uma parceria entre o Governo do Estado e os municípios lançada em 2023 para fortalecer as políticas públicas para mulheres. Atualmente, a iniciativa conta com a participação de 141 das 184 cidades do Ceará. Três eixos são contemplados: Mulher Segura, Mulher Protagonista e Mulher Empreendedora.

“A ideia é que os municípios desenvolvam estratégias nessas áreas. Em contrapartida, o Estado dá apoio por meio de entrega de viaturas da Patrulha Maria da Penha e kits Athena (composto por computadores, monitores, acessórios e mobiliário), além do sistema de integração estadual para atendimento especializado às mulheres em situação de
violência. Também é ofertada capacitação aos profissionais dos municípios, realização de consultorias, dentre outras atividades”, informa.

Em 2024, o município de Milagres recebeu o projeto-piloto de uma iniciativa do Governo do Estado contra a violência doméstica. Nele, os agentes de saúde fazem um mapeamento de das regiões com maior ocorrência de casos e, com essa informação, podem direcionar esforços para as áreas mais vulneráveis, como na zona rural.

“Paralelamente, um estudo aprofundado está em andamento para aprimorar a identificação de mulheres em risco, baseando-se em evidências científicas e na expertise de especialistas”, complementa a nota.

A Secretaria aponta, ainda, que as Unidades Básicas de Saúde, Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) dos municípios trabalham “de forma integrada, acolhendo e encaminhando as mulheres para o atendimento especializado em caso de situação de violência”.

No Ceará, a Secretaria das Mulheres do Estado aponta existem 48 equipamentos que oferecem “serviços de proteção, acolhimento, orientação e suporte” às mulheres. A rede de atenção a esse público inclui Casa da Mulher Brasileira, Casas da Mulher Cearenses, Casas da Mulher Municipais, Salas Lilás, Estação da Mulher e Delegacias de Defesa da Mulher.

A Pasta ainda aponta que outros equipamentos estão sendo criados. É o caso de três Casas da Mulher Cearense, que estão em fase de construção nas cidades de Crateús, Tauá e Iguatu. Os municípios de Horizonte, Trairi e Itarema vão receber Salas Lilás, que já estão com as ordens de serviço expedidas.

“Outros sete municípios cearenses — Aracoiaba, Icapuí, Jaguaribe, Jijoca, Parambu, Solonópole e Tamboril — receberão Salas Lilás em suas Delegacias Municipais, fortalecendo a rede de acolhimento e proteção às mulheres”, informa a nota. Um convênio entre Governo Federal, o Governo do Estado e a Caixa Econômica Federal também foi firmado para a construção de mais três Casas da Mulher Brasileira em Limoeiro do Norte, São Benedito e Itapipoca.

“Além disso, as Unidades Móveis de Atendimento realizam ações de interiorização da política de enfrentamento à violência contra a mulher. O projeto faz parte do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, lançado em 2008 a partir de um acordo entre Governo Federal, Estados e municípios”, aponta.

diariodonordeste.verdesmares.com.br

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11.02.2025