Após prisão domiciliar de Bolsonaro, aliados trouxeram o foro privilegiado de volta ao centro do debate como bandeira bolsonarista.
O foro privilegiado, ou foro por prerrogativa de função, é um tema que está no centro de um acirrado debate político no Brasil e voltou a ganhar fôlego após os recentes episódios de tensão no Congresso Nacional, incluindo o motim e a crise entre os poderes Legislativo e Judiciário.
A crise no Congresso Nacional dos últimos dias, motivada especialmente pelas recentes decisões do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), após a determinação de medidas restritivas contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, no âmbito de inquéritos que investigam a suposta participação na organização e incitação de atos antidemocráticos, além de ataques ao sistema eleitoral e ameaças às instituições brasileiras. Como consequência, e sem aviso nenhum, o ministro Moraes determinou a prisão domiciliar do ex-presidente após o descumprimento das medidas cautelares.
As medidas de Moraes sob o ex-presidente inflamaram a cúpula bolsonarista e despertaram o instinto de proteção e de sobrevivência do grupo. A reação dos congressistas foi imediata e, como resposta, parlamentares alinhados ao bolsonarismo se mobilizaram no Congresso, promovendo manifestações e buscando pautar temas estratégicos, o foro privilegiado, por exemplo, mecanismo que determina em quais instâncias certas autoridades públicas podem ser julgadas, se tornou o foco principal dos bolsonaristas e está dentro das medidas do que chamaram de “pacote da paz”.
Aliados do ex-presidente aproveitaram o momento para intensificar a discussão e apresentar propostas que visam alterar o foro privilegiado, com o objetivo principal de restringir o alcance do STF no julgamento de parlamentares e de outras autoridades.
Inicialmente, o foro privilegiado, que foi criado para proteger a própria Justiça e garantir maior imparcialidade, tem sido usado como barganha para pautar interesses pessoais dentro do centro político. E, para entender melhor o que está em jogo, o PontoPoder ouviu dois especialistas: André Alencar dos Santos, advogado, cientista político e professor de Direito Constitucional; e Magno Carl, cientista político e diretor-executivo do movimento Livres.
O que é o foro privilegiado?
Segundo André Alencar dos Santos, o foro especial por prerrogativa de função "tinha o objetivo de proteger a própria Justiça, garantir maior imparcialidade". Ele explica que "a ideia simples é que as pessoas que exercessem cargos de maior prestígio deveriam ser julgadas por órgãos de maior grau na hierarquia".
No entanto, o professor aponta que, "o STF, principalmente, utilizava o foro especial como forma de pressão e forma de manter os parlamentares sob 'sequestro', há vários processos que ficam anos parados, mas se um desses réus se envolve em disputas do interesse da Corte, a Corte tem essa 'carta na manga' para utilizar, tanto como instrumento de pressão como forma de manter um certo controle sobre as autoridades públicas (legislativas, executivas e até judiciárias)".
Já Magno Carl define o foro privilegiado como "a regra que manda julgar certas autoridades diretamente em tribunais superiores (STF/STJ) por crimes comuns". Ele destaca que, após restrições em 2018 para crimes ligados ao mandato, o STF voltou a ampliar recentemente o alcance, "mantendo casos mesmo após o fim do mandato", o que recolocou o tema no centro do embate entre Supremo e Congresso.
Histórico das tentativas de mudança
André Alencar lembra que "a questão de alterar o foro é complexa", e que "as mudanças mais recentes sobre foro foram feitas por alterações jurisprudenciais do próprio STF". Ele ressalta que, "por meio de PECs, foram pouquíssimas mudanças feitas pelo Congresso", destacando como mais significativa a "Reforma do Judiciário" de 2004, que alterou algumas competências do STF, mas sem grandes modificações no foro privilegiado.
Além disso, uma das propostas mais radicais já elaboradas contra o foro privilegiado é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 333/2017. Essa PEC, aprovada pelo Senado em 2017, prevê que praticamente todas as autoridades percam o direito de serem julgadas em tribunais superiores, transferindo a competência para as instâncias ordinárias, o que representaria o fim do foro privilegiado em larga escala.
Magno Carl complementa que o fim do foro é defendido por muitas organizações da sociedade civil e grupos políticos, e que "em 2017, o Senado aprovou por unanimidade o fim do foro, a CCJ da Câmara deu aval, mas a matéria empacou no Plenário; agora foi reativada pela oposição/centrão” após o motim no Congresso.
Quantas autoridades têm foro privilegiado e como isso se compara a outros países?
Segundo André Alencar, o alcance do foro especial no Brasil é “estarrecedor”. Ele enumera: "Somente no STF, conforme o artigo 102 da Constituição, estão centenas de autoridades: 513 deputados, 81 senadores, 11 ministros do STF, 1 procurador-geral da República, o Presidente e Vice-Presidente da República.
Além disso, ministros de Estado, chefes das Forças Armadas, membros dos tribunais superiores, ministros do Tribunal de Contas da União, entre outros."
Ele compara: "Muito além do 'normal' para outros países que utilizam sistema judicial semelhante".
Quais mudanças os aliados de Bolsonaro querem aprovar?
Para André Alencar, "uma corrente da Direita (os bolsonaristas) pede que o STF deixe de ser competente para julgar, principalmente, os parlamentares que estão sob julgo da Corte e que podem ser utilizados como mecanismo de pressão contra o Legislativo. O que se busca é assegurar ou restabelecer a independência do Legislativo, que hoje é absolutamente subserviente ao Judiciário".
Magno Carl observa que "esse é um movimento claramente reativo, que vem na esteira da prisão domiciliar de Bolsonaro e do avanço de inquéritos no STF; serve como pressão política e moeda de troca em acordos de pauta na Câmara."
Ele destaca ainda que "essa ala da política busca o fim do foro privilegiado, não para acabar com privilégios, como anteriormente se via, mas para retirar do Supremo a possibilidade de julgá-los — diminuindo assim uma possível pressão dos ministros sobre os políticos."

Impactos práticos das mudanças
Segundo André Alencar, se as alterações forem aprovadas, "os processos deveriam ir para instâncias ordinárias (primeiro grau de jurisdição). Os juízes das instâncias inferiores poderiam reavaliar e até refazer determinadas instruções processuais, portanto, as soluções a serem dadas seriam essencialmente diferentes do que se espera do STF."
Magno Carl explica que "se a PEC prosperar, prisões ou tornozeleiras de parlamentares passariam a depender de aval do Plenário e ações penais exigiriam autorização das Casas, com efeito imediato sobre medidas cautelares em curso". Ele ainda alerta que "alterações de foro tendem a gerar disputa sobre transição (o que desce à 1ª instância e quando)."
Riscos para a democracia e a Justiça
André Alencar chama atenção para possíveis problemas:
- "Os juízes de primeiro grau podem ter maior constrangimento em julgar altas autoridades."
- "Há riscos muito maiores de prescrição, porque os réus poderão usar da lentidão da justiça e de excessos de mecanismos de defesa."
- "Um mesmo tipo de autoridade pode ser julgada por centenas de juízes diferentes, o que traria maior insegurança e risco de 'loteria' judicial."
Magno Carl prevê uma reação forte da sociedade e do Judiciário. Ele lembra que "em 2021, a PEC da Imunidade foi rotulada como 'PEC da impunidade', gerou alertas do STF e críticas da magistratura. A PGR pediu ajustes para conter efeitos processuais. Podemos ter atrito institucional e mobilização civil."
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Cariri Ativo
14.08.2025